A autora Marina Colasanti, expoente da literatura nacional, apesar de não ser brasileira nata, vive no Brasil desde 1948 e, em muitos de seus textos, capta, de forma consistente, nuances deste povo e desta terra.

Observe a tese defendida pela autora na crônica “Eu sei, mas não devia” ao questionar o comportamento humano diante das intempéries e do comodismo.

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1996. p. 9.

A crônica “Eu sei, mas não devia”, de Marina Colasanti, traz à tona uma reflexão bastante acentuada a respeito de algumas situações que têm sido constantes na rotina da sociedade contemporânea, na visão do eu do cronista.

Já no primeiro parágrafo, diante da declaração “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.”, é possível perceber que há uma crítica estabelecida no contexto apresentado.

1. Nessa crônica, o eu do cronista defende uma tese. Qual é essa tese?

O eu do cronista defende a tese de que, infelizmente, de modo geral, os homens estão deixando de viver para, apenas, manterem-se vivos. Há certa inércia diante da vida.

2. Como o narrador, ao longo do texto, estabelece uma opinião crítica a respeito da problemática levantada? Justifique sua resposta.

Ao longo do texto, o narrador apresenta ações que são praticadas, no dia a dia dos sujeitos, com o único intuito de justificar a falta de reação diante dos acontecimentos diários, que vão sendo vividos de maneira mecânica, sem a intenção de mudança de perspectiva e/ou de realidade.

3. Essa crônica de Marina Colasanti trata do cotidiano das pessoas, especialmente daquelas que correm no dia a dia, sem olhar para os lados, e acabam se acostumando com tudo ao redor, deixando de lado coisas, realmente, importantes, confiando no amanhã para a resolução de tudo.

No segundo parágrafo, ao afirmar que “à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão”, que tipo de comportamento está sendo questionado? Explique sua resposta.

Nesse parágrafo, o eu do cronista questiona o fato de as pessoas se acostumarem a viver em com pouco espaço, sem a luminosidade do dia, dos espaços abertos, ou seja, habituaram-se à vida enclausurada.

4. No terceiro parágrafo, há uma alusão a uma situação muito comum na atualidade. Ao mencionar fatos como acostumar-se “a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora” ou “tomar o café correndo porque está atrasado”, que condição da vida moderna está sendo questionada? Comente.

Nesse parágrafo, o narrador questiona a correria do dia a dia na atualidade, que faz as pessoas realizarem tudo com o mínimo de tempo possível. Em razão do acúmulo de obrigações e da correria contra o tempo, as pessoas passam pelo dia sem realmente vivê-lo.

5. Quando o narrador comenta que, nesse contexto de inércia, “aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração”, é possível perceber que não são apenas situações banais que estão sendo questionadas. O que se nota com relação ao comportamento humano com base nessa constatação?

No parágrafo em que o narrador menciona as guerras, é possível perceber que, até mesmo diante de fatos assoladores, há uma inércia por parte do ser humano, que não demonstra qualquer tipo de reação, mesmo diante de um contexto tão devastador como a guerra.

6. Releia o quinto parágrafo do texto.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

Que tipo de atitude o eu do cronista contesta nesse parágrafo?

Ele contesta a questão da indiferença do homem em relação ao próprio homem.

7. Leia a tirinha a seguir.

É possível fazer uma ligação entre a tirinha de Armandinho e o quinto parágrafo da crônica “Eu sei, mas não devia”? Comente sua resposta.

Sim, é possível estabelecer uma ligação entre o quinto parágrafo da crônica lida e a tirinha de Armandinho, pois ambos os textos questionam a indiferença humana em relação ao semelhante. Assim como na crônica, a tirinha questiona o fato de a humanidade caminhar sozinha, na direção contrária à do outro. Outra possível interpretação: a ação do menino parece indicar a vontade de mudar o rumo que as pessoas seguem mecanicamente.

8. Outro ponto que é colocado em discussão na crônica de Marina Colasanti é a dependência do dinheiro, do consumismo e da manipulação midiática.

Segundo o narrador, como as pessoas têm resolvido a questão do alto valor co- brado pelos bens e produtos dos quais elas necessitam?

Segundo o narrador, as pessoas estão trabalhando mais, para ganhar mais dinheiro, a fim de poder pagar mais do que as coisas valem, porque tudo aquilo de que o ser humano necessita tem um preço.

9. Com relação aos meios de comunicação, qual é a crítica instituída? Explique-a.

Há uma alegação de que, ao se acostumar com a invasão das propagandas, dos anúncios e da publicidade de modo geral, as pessoas são instigadas, lançadas a esse contexto de forma passiva e irrestrita. Assim, há manipulação por parte dos meios de comunicação, uma vez que há o conhecimento da necessidade da aquisição de bens e de produtos por parte da sociedade.

10. O texto de Marina Colasanti acaba promovendo uma reflexão bastante acentuada. Aliando aspectos da crônica, dos textos argumentativos e se aproximando do artigo de opinião, por meio da sensibilidade do eu do cronista diante de um tema atual e polêmico e da exposição de um juízo de valor, há uma tentativa de provocar uma tomada de consciência por parte do leitor.

Em que parágrafo é possível perceber que os seres humanos, de modo geral, têm deixado o mundo à deriva, ou seja, à mercê do descaso e do descuido total com relação à natureza? Comente.

Essa constatação acontece no oitavo parágrafo, quando o eu do cronista menciona que as pessoas se acostumam com a poluição, com as bactérias na água potável, com a contaminação da água do mar, com a falta de passarinhos e de plantas, etc. Nesse momento, fica clara a postura dos sujeitos diante da natureza, que é de descuido e de descaso total.

11. Nos dois últimos parágrafos, o narrador apresenta possíveis motivos para essa condição de inércia do ser humano diante da maneira como se vive na contemporaneidade. Quais são esses motivos? Apresente-os.

Conforme o eu do cronista, as pessoas se acostumam com quase tudo para evitar o sofrimento, mesmo que isso seja, apenas, um mascaramento da real situação. Além disso, há uma tentativa de preservar a própria pele, ou seja, uma necessidade de se esquivar dos problemas, das tristezas, dos descontentamentos.

12. Para fechar as ideias, os questionamentos e as reflexões contidas na crônica “Eu sei, mas não devia”, com o intuito de voltar ao ponto de vista sustentado ao longo do texto, o narrador encerra suas reflexões com as seguintes palavras: “A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.” Interprete esse trecho, voltando suas ideias para a tese do eu do cronista.

Resposta pessoal. Espera-se que os alunos estabeleçam uma ligação dessa resposta com a tese defendida, de que, de modo geral, os seres humanos estão deixando de viver para, apenas, manterem-se vivos. Há certa inércia diante da vida.


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