Quando ouvimos falar em “romance”, logo pensamos em uma história de amor. Todavia, essa ideia é bastante imprecisa, porque considera apenas o assunto do texto e não a forma como ele é apresentado. Neste capítulo, você vai estudar o gênero textual romance e conhecer suas características.

Inicie com a leitura de três capítulos do romance A máquina, de Adriana Falcão.

Nordestina era uma cidadezinha desse tamanhinho assim da qual se dizia: eita lugarzinho sem futuro. Antônio ouviu dizer isso desde pequeno e deu por certo o fato.

Pra chegar a Nordestina tinha que se andar muito. 

É claro que ninguém fazia isso. O que é que a pessoa ia fazer num lugar que não tinha nada para fazer? No entanto, quem fazia o caminho inverso contava pros outros o quanto tinha andado, e então se deduzia que se o caminho de saída era um, o caminho de chegada só podia ser o mesmo.

Antônio trabalhava na prefeitura da cidade, sendo pra folha de pagamento o funcionário de número 19. 

Pro prefeito ele era o moço do café.

Pro povo em geral era Antônio da dona Nazaré. Pra dona Nazaré era seu filho mais velho. Toda noite dona Nazaré pedia a Deus por um filho seu, de modo que a cada um cabiam dois pedidos por mês mais um terço de pedido. Na falta de pedido retalhado, deixava juntar três meses e então fazia mais um, inteiro, pra cada filho. Nos meses de três pedidos – abril, agosto e dezembro – ela aproveitava pra pedir saúde, dinheiro e felicidade. Nos outros nove meses do ano os meninos tinham que se contentar com saúde e dinheiro somente, o que nunca coincidia com a realidade, pois se dona Nazaré fosse mesmo boa de pedido, há muito tempo Deus lhe teria enviado uma geladeira nova. Mesmo assim ela pedia, por costume, por insistência, porque, se deixasse de pedir, Deus podia esquecer que eles existiam, motivo é que não lhe faltava.

Se palavra gastasse, duvido que tivesse sobrado algum adeus em Nordestina, haja vista a frequência com que se usava naquele tempo essa palavra.

Era tanta gente indo embora que o povo até se acostumou com os vazios que ficavam e iam tomando conta da cidade, apagando cheiros, transformando em memória frases, olhares, gestos, e a cara daqueles que não tinham retrato.

Nos dias de faxina, e portanto principalmente nas quintas, sempre apareciam objetos esquecidos por um ou outro dos que já tinham se ido, que só serviam pra devolver rancores a abandonos superados. A estes objetos se davam diferentes fins, sendo o mais comum o fundo de uma gaveta, e o mais doído, a navalhada.

Os motivos da debandagem generalizada às vezes viravam bilhetes e alguns eram furiosamente rasgados. O motivo escrito quase sempre era um arremedo do verdadeiro e tinha por maior utilidade consolar o destinatário do que dar a se entender o remetente, pois como é que se explica, diga mesmo, que o motivo de ir embora era só o nada?

Algumas partidas eram anunciadas com antecedência devido à quantidade de providências a serem tomadas. As notícias se espalhavam de várias formas.

Vende-se mesa de fórmica c/4 cadeiras, sofá 2 lug., cama casal, berço, fogão e geladeira. Ótimo estado. Tratar c/ Lurdinha no cartório.

Vendo urgente casa perto da bica. Quarto, sla., quintal, banheiro dentro. Pechincha. Rua da Travessa, 38.

Vendo fiteiro ótimo ponto lucro excelente.

Fundos da Prefeitura. Falar com Marconi no local.

Por motivo de viagem vendo gado bom danado. Dois bois, três vacas, um garrote.

Nos primeiros meses, os que tinham se ido costumavam ligar aos domingos, quase sempre a cobrar, pra casa de uma vizinha. Depois as notícias iam se espaçando e se dizia deles que tinham sumido no oco do mundo, que já devia estar cheio, inclusive.

Quem olhava pro horizonte em Nordestina, querendo ou não, imaginava uma linha perpendicular a ele, a linha traçada pelo destino dos que se importavam com o destino, de modo que o povo de Nordestina todinho tinha o horizonte por uma cruz, e não por uma linha, e era por esse motivo que o verbo cruzar cabia em todo tipo de entendimento.

Entre Nordestina e a cidade que ficava antes dela, tinha uma placa com os dizeres “Bem-vindo a Nordestina”. Há quem diga que até o tempo de Antônio quase ninguém tomou conhecimento da existência dessa placa.

O povo que morava da placa pra dentro imaginava uma risca no chão que separava Nordestina do resto do mundo. O povo que morava da placa pra fora não imaginava nada, jamais pensou no assunto, e não tinha a menor ideia de que pra lá dali ainda tinha mais um pouco.

Vivia em Nordestina, mesmo ali na rua de baixo, uma moça que apertava os olhos pela metade quando olhava, por quem Antônio era completamente apaixonado. Ninguém sabe dizer até hoje se o que endoidecia ele era o olhar pelo meio de Karina ou o resto todo. Entenda-se por todo inclusive o perfume que ela ia deixando por onde passava.

Antônio, que pra cada pessoa era um, pra Karina era somente o rapaz que sempre dava um pulo na casa dela quando largava do trabalho. 

Depois ficou diferente, mas só depois. 

Só depois que as coisas todas mudaram. 

AdriAnA FAlcão. A máquina. São Paulo: Salamandra, 2015. p. 12-17.

1. Grande parte da população da cidade de Nordestina migra para outras regiões. O que motiva a saída dos moradores?

A ausência de qualquer interesse em Nordestina.

2. Releia o seguinte trecho.

“Os motivos da debandagem generalizada às vezes viravam bilhetes e alguns eram furiosamente rasgados. O motivo escrito quase sempre era um arremedo do verdadeiro e tinha por maior utilidade consolar o destinatário [...].” 

a) Que palavra do trecho exprime a ideia de saída?

Debandagem. 

b) Essa palavra é um termo que não costuma aparecer nos dicionários. Qual é a forma equivalente registrada neles? Qual é o sentido da palavra? 

A palavra é debandada, que significa “fuga”, “saída desordenada”.

c) Por que essa palavra é mais expressiva que saída? 

Porque ela reforça a ideia de que as pessoas fogem da cidade, querem se livrar dela.

d) Arremedo é uma cópia malfeita, uma imitação de baixo valor. Por que razão quem parte opta por informar um “arremedo do [motivo] verdadeiro”?

Porque não há um motivo claro; a partida é motivada pela ausência de algo que justifique a permanência.

e) Que elemento do dia a dia contribui para a sensação de que Nordestina é uma cidade em constante abandono? 

Os frequentes anúncios de venda de residências, pontos comerciais, móveis e animais.

f) Que expressão usada pelos moradores sugere que o espaço fora de Nordestina, para onde vão os que partem, é um enigma?

A expressão oco do mundo.

3. Releia o seguinte fragmento.

“Quem olhava pro horizonte em Nordestina, querendo ou não, imaginava uma linha perpendicular a ele, a linha traçada pelo destino dos que se importavam com o destino, de modo que o povo de Nordestina todinho tinha o horizonte por uma cruz, e não por uma linha, e era por esse motivo que o verbo cruzar cabia em todo tipo de entendimento." 

a) Em sua opinião, por que a autora escolheu nomear a cidade como Nordestina? 

Resposta pessoal. Espera-se que os alunos notem que o termo funciona como generalização, podendo se referir a muitas cidades da região Nordeste.

b) O narrador se mostra compreensivo ou enraivecido em relação a quem parte de Nordestina? Justifique sua resposta com um trecho do fragmento transcrito. 

O narrador compreende a partida, como sugere ao afirmar que os que partiam eram os que “se importavam com o destino”

c) Embora A máquina seja uma ficção, o romance aborda um tema da realidade. De que se trata? 

O tema da migração, muito comum em cidades do interior nordestino, das quais os moradores partem procurando melhores oportunidades.

d) Você acha que esse tema está relacionado apenas a um contexto regional ou pode ser considerado universal? Explique sua resposta.

Resposta pessoal. Espera- -se que os alunos percebam que a busca de oportunidades em cidades maiores e com mais oportunidades de estudo, trabalho e lazer não é um evento exclusivo do Nordeste brasileiro ou de regiões interioranas. Há contextos de migração no mundo todo.

4. Os capítulos introduziram alguns personagens. Releia o trecho a seguir.

“[...] Ninguém sabe dizer até hoje se o que endoidecia ele era o olhar pelo meio de Karina ou o resto todo. Entenda-se por todo inclusive o perfume que ela ia deixando por onde passava. 

Antônio, que pra cada pessoa era um, pra Karina era somente o rapaz que sempre dava um pulo na casa dela quando largava do trabalho.” 

a) De acordo com esse trecho, para cada pessoa Antônio era um. Colhendo todas as informações disponíveis nos três capítulos, o que o leitor pode saber sobre Antônio? 

Trata-se de um funcionário da prefeitura que serve café, é filho de Dona Nazaré e tem vários irmãos. É apaixonado por Karina, que, como todos os outros, não lhe dá muita atenção.

b) O que a oração “que pra cada pessoa era um” revela sobre Antônio? 

A oração “que pra cada pessoa era um” passa a ideia de que o personagem não chama muito a atenção das pessoas, sendo identificado por sua filiação ou trabalho, e não por características individuais.

c) Explique por que a descrição de Karina mostra uma diferença significativa em relação aos demais moradores de Nordestina. 

 Karina diferencia-se dos demais por ser uma pessoa marcante, como sugere o fato de ela deixar um rastro de perfume nos espaços tão vazios de Nordestina. 

d) Releia: “era o olhar pelo meio de Karina ou o resto todo”. O narrador usou a língua de maneira criativa. Que dupla de palavras opostas produz um efeito expressivo?

Meio e todo.

Verifique se os alunos notaram que os termos meio e todo contribuem para o efeito de humor.

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