O conto a seguir também é um conto de mistério. Que história misteriosa poderá se esconder por trás de um simples casal de velhos? Vamos ler para saber?


O casal de velhos

O céu estava escurecendo rapidamente, fechado, com nuvens escuras, quase pretas, anunciando uma tempestade de trovões, relâmpagos e água pesada. Manezinho apressou o passo na estrada deserta meio sem saber o que fazer. Tinha pegado uma carona até o trevo e agora caminhava em direção à cidade que se escondia do lado de lá da pequena montanha. Quase uma hora de caminhada e via apenas a estradinha se espichando em direção ao monte de terra. Tomaria chuva, com certeza. No máximo, tentaria se esconder debaixo de uma daquelas arvorezinhas raquíticas que margeavam o caminho. A escuridão aumentou ainda mais, fazendo com que ele, um homem danado de corajoso, tivesse medo do temporal e do aguaceiro que estavam para vir. Pensou em correr um pouco, mas desistiu, achando que nada adiantaria. Olhou para cima, como que buscando explicação, e resmungou: “Que venha água, que eu não tenho medo!”

Mal acabara de resmungar, avistou uma casinha branca e suja, na beira da estrada quase sem vegetação. Manezinho levou um susto que o fez arrepiar até bem pouco tempo atrás, algumas dezenas de passos antes, a casinha não estava ali. Ou estava vendo uma miragem ou o medo da tempestade  era real e não o estava deixando ver nada à sua frente. De qualquer forma, após a primeira impressão de estranhamento, apressou-se em bater à porta e pedir guarida, antes que a natureza o castigasse:

— Ó de casa! 

Silêncio.

— Ó de casa! Tem gente aí?

Ouviu um ruído de ferro rangendo e a porta de madeira se abriu. Um rosto velho, cheio de rugas, mas simpático, apareceu com um sorriso acolhedor. Manezinho se explicou à velha senhora:

— Vem chuva brava aí, minha senhora. Ainda estou longe da cidade...

A velha olhava ternamente para Manezinho.

— ... se a senhora não se importar...

— Claro que não, meu filho. Entre. A casa é pobre mas dá para receber mais um.

— Obrigado! Assim que a chuva passar, eu vou embora.

— Não precisa ter pressa. A casa é pobre mas cabe mais um. Entre.

Manezinho entrou. A casa era pobre mesmo. Ou melhor, reparando bem, a casa, na verdade, era estranha, mais estranha do que pobre: o cômodo em que se encontrava era grande, escuro, com luz de velas e três cadeiras apenas; havia um outro cômodo, mas estava fechado. Numa das cadeiras estava sentado o outro habitante da casa, um velho não menos simpático:

— Fique à vontade — disse, levantando-se para cumprimentá-lo com uma enorme mão fria.

Sente-se.

Manezinho sentou-se. Os velhos também se sentaram. Pareciam tristes, mas queriam conversa.

— O senhor vem de longe?

Manezinho contou alguns pedaços de sua história.

— Não tenho lugar de onde venho. Faz três ou quatro anos que não tenho lugar fixo. Sou do mundo... andando aqui e ali... Paro um pouco em cada lugar, trabalho, ganho algum dinheiro e torno a seguir caminho.

Um cheiro forte de velas tomava conta do cômodo e da história.

— Você não tem família?

Manezinho não soube quem perguntou, se o velho ou a velha. Teve a impressão de que a voz não viera de nenhum dos dois, que viera de algum outro lugar, tamanha era a quietude silenciosa do casal de velhos.

Mais um pouco da sua história cheirando a velas:

— Não tenho. Já tive um dia! Tive duas.

— Duas?

— É. Uma família onde eu nasci e outra que me criou desde pequeno. Depois que eu cresci e aprendi uma profissão, resolvi correr o mundo à procura de meus pais verdadeiros.

— E ainda não encontrou seus pais verdadeiros?

Manezinho entendeu que a pergunta tinha vindo da velha senhora. A fraca luz das velas e o escuro do cômodo davam-lhe a impressão de que ela era transparente, algo nebuloso, sem consistência. Achou que fosse maluquice sua, efeito do cansaço e medo da tempestade. Olhou mais fixamente para ela e respondeu:

— Não. Acho que nem vou encontrar. Mas gostaria muito de encontrá-los e dizer-lhes que gosto muito deles, mesmo tendo sido criado por outras pessoas. Eu tenho uma fotografia deles me carregando no colo. Está muito gasta e estragada, mas é a única pista que tenho para procurá-los. Quem sabe, um dia

— Nós também passamos boa parte da vida procurando o único filho que tivemos...

Manezinho teve a impressão de que fora o velhinho o dono da fala. Continuou a conversa, dirigindo-se a ele:

— Procurando...?

— O destino tirou nosso filho. Eu não gostaria de morrer sem ver nosso filho.

Um silêncio mortal, regado a cheiro de vela, barulho de chuva, trovões e relâmpagos, interrompeu momentaneamente a conversa.

— Vou fazer uma sopa. O senhor aceita tomar um prato conosco?

— Aceito, claro.

A velha senhora foi ao outro cômodo, que estava fechado, e no mesmo instante voltou com dois pratos de sopa. Ofereceu um ao velho e o outro a Manezinho. Voltou, buscou outro para si e veio sentar-se junto deles.

— É uma sopa pobre, mas é a mesma que ofereceríamos ao nosso filho se o encontrássemos.

Manezinho tomou a sopa mais por gentileza. Não tinha gosto algum o líquido que ele levava à boca. Depois continuaram a conversa, devagar, com intervalos de silêncio, mas sem parar. Havia nos velhos algo de extremamente simpático e familiar, algo que, apesar das estranhezas da casa e do comportamento deles, cativava Manezinho.

— Acho que seria a minha maior alegria reencontrar meus pais.

— Também seria a nossa grande alegria rever o filho que o destino levou...

A conversa arrastou-se por mais tempo. Manezinho, às vezes, tinha a impressão de que conversava sozinho, tamanha era a quietude do casal de velhos. Foi assim até que sentiu sono. A tempestade tinha passado e ele decidiu que podia continuar a caminhada. Mas a gentileza dos velhinhos segurou-o mais tempo, dessa vez para dormir.

— Não se vá. Está escuro e a cidade fica longe. Durma aqui e amanhã você seguirá caminho. Não tem cama, mas você pode se ajeitar num canto qualquer.

Ele agradeceu e aceitou. Encostou-se num canto do cômodo, esticou o corpo no chão frio, apoiou a cabeça na mala de lona que trazia consigo e dormiu. Dormiu cansado, ainda com fome, com frio e uma esquisita sensação de não estar entendendo direito sua presença naquela casa e a conversa com o casal de velhos. Dormiu mal, uma noite cheia de sonhos estranhos, pesados e incompreensíveis.

Acordou da noite maldormida com a luz forte do sol filtrada pelo grosso vidro da porta da casa. Ainda cansado pela noite de sono ruim, correu lentamente os olhos pelos espaços da casa, procurando primeiro a presença dos velhos e depois os objetos conhecidos. Não encontrou nem uma coisa nem outra. Não havia barulho de pessoas, só silêncio. Não havia sinais de vida. Só três cadeiras escuras encostadas à parede e quatro cavaletes de ferro cromado.

Na frente dos cavaletes, como se fosse um altar, enormes castiçais com grandes velas brancas pareciam arrumados para alguma cerimônia. Ele deu um pulo, o coração batendo desesperado, quase à boca, e correu para a porta, abrindo-a imediatamente.

Não fosse Manezinho quem era, uma pessoa acostumada às surpresas, às mudanças, aos reveses da vida, teria sucumbido ante o susto que levou quando percebeu onde estava: acabara de passar a noite na capela do cemitério da cidade. Saiu disparado em direção ao portão. No caminho, encontrou uma pessoa, provavelmente o coveiro, cavando duas covas. Parou afobado junto ao homem e perguntou-lhe:

— O senhor pode me dizer se há por aqui uma pequena casa habitada por um simpático casal de velhos?

O coveiro ergueu o corpo, descansou a pá suja de terra e respondeu:

— Não moço. No caminho da cidade só tem mesmo o cemitério. Agora... o casal de velhos simpáticos de que o senhor está falando pode ser o que morreu esta noite. São dois velhos que moram perto da escola. Eles morreram, depois da chuvarada. Essas covas são para eles...

Um arrepio profundo quase revirou o corpo de Manezinho. Lembrou-se da conversa, da sopa, do cheiro de vela...

— Onde o senhor disse que eles moram?

— Moravam, moço. Agora já morreram.

— Onde eles moravam?

— Perto da escola. Todo mundo sabe, é só perguntar.

Manezinho disparou pela estrada. Estava um pouco longe, mas a carreira foi tão aflita e desesperada que num instante a cidade chegou perto dele. Mais um instante e descobriu a casa do casal de velhos. Sentiu que estava perto, bem perto de alguma explicação. O cheiro de velas da noite anterior voltou aos seus sentidos quando entrou na pequena sala onde estavam, lado a lado, os dois caixões de madeira com os corpos. Aproximou-se, devagar, e viu os rostos do simpático casal com quem passara a noite anterior. O estômago vazio resmungou em coro com o coração acelerado. Ali estavam seus dois companheiros de conversa! Mas faltava alguma coisa ainda. Faltava uma explicação. Por que ele? Por que eles? Por mais que procurasse entender o episódio da noite passada no cemitério, não conseguia encontrar explicações.

Ficou muito tempo de pé, parado em frente aos corpos, em meio à curiosidade das pessoas que ali estavam. Alguém lembrou-se de convidá-lo a sentar-se. Manezinho agradeceu e sentou-se. Os olhos começaram a correr a parede, mecanicamente, procurando aqui e ali os detalhes que estavam escapando de sua compreensão. E foi assim, nessa procura, recolhendo pedaços de lembranças, que reparou em uma moldura desbotada presa à parede.

“Não é possível! Não é possível!”

Apanhou sua carteira e, atrapalhado, remexendo papéis e cédulas velhas de dinheiro, pegou uma pequena fotografia. Nela, um casal abraçava carinhosamente uma criança de cerca de três anos. Era a foto dele com seus pais verdadeiros, primeira e única foto, relíquia guardada por anos e anos.

Manezinho levantou-se, trêmulo, e se aproximou da foto maior da parede. Ergueu a sua e comparou. Eram rigorosamente a mesma foto.

A cidade toda ouviu o grito de Manezinho.

GARCIA, Edson Gabriel. Sete gritos de terror. São Paulo, Moderna, 1991. p. 17-22.

1. Vimos que, no parágrafo inicial de um conto, são apresentados os personagens, o espaço e o tempo em que os fatos ocorrem. Identifique esses elementos no conto lido.

Personagens: Manezinho, uma velha e um velho; espaço: uma estradinha deserta, uma casinha branca e suja na beira da estrada e uma casa ao lado de uma igreja; tempo: fim de tarde e noite e manhã do dia seguinte.

2. A história é iniciada por um narrador observador, em 3ª- pessoa, que apresenta os fatos. Logo nesse início, ele já apresenta uma situação que mostra o clima de mistério que envolve a história. Que fato inicial transmite essa ideia?

A descrição de como o tempo estava. O céu estava escurecendo rapidamente, fechado, com nuvens escuras, anunciando uma tempestade com trovões e relâmpagos.

3. A história lida é repleta de fatos estranhos, que também contribuem para criar um clima de mistério. Cite alguns desses fatos.

Sugestão de resposta: O fato de Manezinho não conseguir identificar de qual dos dois velhinhos vinham algumas falas; de a mulher dizer que ia fazer uma sopa e, no mesmo instante, já voltar com um prato na mão.

4. No decorrer da narrativa, percebe-se, em razão do emprego de algumas palavras e expressões, que se trata de uma história cheia de mistério. Sublinhe, na história, alguns trechos que justificam essa afirmação.

5. Nos contos em geral, há um momento de maior intensidade, tensão, que consiste no clímax da história. Indique em qual momento ele ocorre nesse conto.

No momento em que Manezinho, ao acordar, vai para a cidade e chega ao velório do casal de velhos e nota o retrato na parede.

6. O desfecho da história aconteceu da forma que você imaginava ou você tinha outra expectativa sobre o final dela? Que expectativa era essa? Comente.

Resposta pessoal.

7. Como vimos, um conto de mistério apresenta recursos que ajudam a criar uma atmosfera de suspense, prendendo a atenção do leitor para que ele queira saber o desfecho da história. Um recurso muito empregado é a descrição dos ambientes. Identifique, no conto lido, como o interior da casa é descrito e transcreva-o.

Era uma casa pobre, mais estranha do que pobre, com um cômodo grande, escuro, com luz de velas e três cadeiras.

8. Releia os trechos a seguir.

Manezinho sentou-se. Os velhos também se sentaram. Pareciam tristes, mas queriam
conversa.
— O senhor vem de longe?
Manezinho contou alguns pedaços de sua história.
— Não tenho lugar de onde venho. Faz três ou quatro anos que não tenho lugar fixo.
Sou do mundo... andando aqui e ali... Paro um pouco em cada lugar, trabalho, ganho algum dinheiro e torno a seguir caminho.

Ao narrar uma história, é possível empregar dois tipos de discurso: direto e indireto. Veja em que consiste cada um deles.

No discurso direto, o narrador reproduz a fala, cita fielmente a fala da personagem, por meio de diálogos, usando travessões ou aspas.

No discurso indireto, o narrador conta o que os personagens disseram ou realizaram, ou seja, não encontramos as palavras do personagem, pois o narrador funciona como testemunha auditiva e transmite ao leitor o que ouviu dele. Os verbos aparecem, normalmente, na 3ª- pessoa do singular ou do plural.

Nos trechos acima, há esses dois tipos de discurso. Sublinhe os trechos em discurso direto e grife os trechos em discurso indireto.

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