Leia o conto a seguir, para responder às questões propostas.


Dona Custódia

Ar de empregada ela não tinha: era uma velha mirrada, muito bem arranjadinha, mangas compridas, cabelos em bandó num vago ar de camafeu — e usava mesmo um, fechando-lhe o vestido ao pescoço. Mas via-se que era humilde — atendera ao anúncio publicado no jornal porque satisfazia às especificações, conforme ela própria fez questão de dizer: sabia cozinhar, arrumar a casa e servir com eficiência a senhor só.

O “senhor só” fê-la entrar, meio ressabiado. Não era propriamente o que esperava, mas tanto melhor: a velhinha podia muito bem dar conta do recado, por que não? E além do mais impunha dentro de casa certo ar de discrição e respeito, propício ao seu trabalho de escritor. Chamava-se Custódia.

Dona Custódia foi logo botando ordem na casa: varreu a sala, arrumou o quarto, limpou a cozinha, preparou o jantar. Deslizava como uma sombra para lá, para cá — em pouco sobejavam provas de sua eficiência doméstica. Ao fim de alguns dias, ele se acostumou à sua silenciosa iniciativa (fazia de vez em quando uns quitutes) e se deu por satisfeito: chegou mesmo a pensar em aumentar-lhe o ordenado, sob a feliz impressão de que se tratava de uma empregada de categoria.

De tanta categoria que no dia do aniversário do pai, em que al- moçaria fora, ele aproveitou-se para dispensar também o jantar, só para lhe proporcionar o dia inteiro de folga. Dona Custódia ficou muito satisfeitinha, disse que assim sendo iria também passar o dia com uns parentes lá no Rio Comprido.

Mas às quatro horas da tarde ele precisou dar um pulo ao apartamento para apanhar qualquer coisa que não vem à história. A história se restringe à impressão estranha que teve, então, ao abrir a porta e entrar na sala: julgou mesmo ter errado de andar e invadido a casa alheia. Porque aconteceu que deu os móveis da sala dispostos de maneira diferente, tudo muito arranjadinho e limpo, mas cheio de enfeites mimosos: paninho de renda no consolo, toalha bordada na mesa, dois bibelôs sobre a cristaleira — e em lugar da gravura impressionista na parede, que se via? Um velho de bigodes o espiava para além do tempo, dentro da moldura oval. Nem pôde examinar direito tudo isso, porque, espalhadas pela sala, muito formalizadas e de chapéu, oito ou dez senhoras tomavam chá! Só então reconheceu entre elas D. Custódia que antes proseava muito à vontade mas ao vê-lo se calou, estatelada. Estupefato, ele ficou para- do sem saber o que fazer e já ia dando o fora quando sua empregada se recompôs do susto e acorreu, pressurosa:

– Entre, não faça cerimônia! — puxou-o pelo braço, voltando-se para as demais velhinhas: — Este é o moço que eu falava, a quem alugo um quarto.

Foi apresentado a uma por uma: viúva do Desembargador Fulano de Tal; senhora Assim-Assim; senhora Assim-Assado; viúva de Beltrano, aquele escritor da Academia! Depois de estender a mão a todas elas, sentou-se na ponta de uma cadeira, sem saber o que dizer. Dona Custódia veio em sua salvação:

— Aceita um chazinho?

— Não, muito obrigado. Eu...

— Deixa de cerimônia. Olha aqui, experimenta uma brevidade, que o senhor gosta tanto. Eu mesma fiz.

Que ela mesma fizera ele sabia — não haveria também de pretender que ele é que cozinhava. Que diabo ela fizera de seu quadro? E os livros, seus cachimbos, o nu de Modigliani junto à porta substituído por uma aquarelinha...

— A senhora vai me dar licença, Dona Custódia.

Foi ao quarto — tudo sobre a cama, nas cadeiras, na cômoda. Apanhou o tal objeto que buscava e voltou à sala:

— Muito prazer, muito prazer — despediu-se, balançando a cabeça e caminhando de costas como um chinês. Ganhou a porta e saiu.

Quando regressou, tarde da noite, encontrou como por encanto o apartamento restituído à arrumação original, que o fazia seu. O velho bigodudo desaparecera, o paninho de renda, tudo — e os objetos familiares haviam retornado ao seu lugar.

— A senhora...

Dona Custódia o aguardava, ereta como uma estátua, plantada no meio da sala. Ao vê-lo, abriu os braços dramaticamente, falou apenas:

— Eu sou a pobreza envergonhada!

Não precisou dizer mais nada: ao olhá-la, ele reconheceu logo que era ela: a própria Pobreza Envergonhada. E a tal certeza nem seria preciso acrescentar-se as explicações, a aflição, as lágrimas com que a pobre se desculpava, envergonhadíssima: perdera o marido, passava necessidade, não tinha outro remédio — escondida das amigas se fizera empregada doméstica! E aquela tinha sido a oportunidade de reaparecer para elas, justificar o sumiço... Ele balançava a cabeça, concordando: não se afligisse, estava tudo bem. Concordava mesmo que de vez em quando, ele não estando em casa, evidentemente, voltasse a recebê-las como na véspera para um chazinho.

O que passou a acontecer dali por diante, sem mais incidentes. E às vezes se acaso regressava mais cedo, detinha-se na sala para bater um papo com as velhinhas, a quem já se ia afeiçoando.

Não tão velhinhas que um dia não surgisse uma viúva bem mais conservada, a quem acabou também se afeiçoando, mas de maneira especial. Até que Dona Custódia soube, descobriu tudo, ficou escandalizada! Não admitia que uma amiga fizesse aquilo com seu hóspede. E despediu-se, foi-se embora para nunca mais.

SABINO, Fernando. Os melhores contos de Fernando Sabino.

Rio de Janeiro: Record, 1986. p. 98-101.


1. Releia este trecho do texto e, em seguida, responda ao que se pede.

Ar de empregada ela não tinha: era uma velha mirrada, muito bem arranjadinha, mangas compridas, cabelos em bandó num vago ar de camafeu – e usava mesmo um, fechando-lhe o vestido ao pescoço.

Com essas palavras, o narrador apresenta a personagem que dá nome ao conto. Explique quem era Dona Custódia.

Dona Custódia era uma senhora que tinha ficado viúva. Com a viuvez, viera a pobreza e a necessidade de arrumar um emprego. No entanto, ela tinha vergonha de assumir a atual condição às amigas, por isso usava a casa do patrão para apresentá-la como sendo dela às amigas, que não sabiam que ela era empregada da casa onde as encontrava.

2. Agora, releia este trecho do texto e responda ao que se pede.

Mas às quatro horas da tarde ele precisou dar um pulo ao apartamento para apanhar qualquer coisa que não vem à história. A história se restringe à impressão estranha que teve, então, ao abrir a porta e entrar na sala [...]

a) O que o patrão de Dona Custódia descobriu nesse momento?

O patrão de Dona Custódia descobriu que ela usava a casa dele para se encontrar com as amigas e apresentar a casa como sendo dela. Ela recebia as senhoras para um chá.

b) Qual foi a reação do dono da casa ao perceber o que a empregada estava fazendo? Comente.

Ao perceber o que Dona Custódia fazia, o patrão, apesar do susto, não desmentiu a situação e agiu conforme a condução da empregada. Além disso, depois dos esclarecimentos, ele permitiu que ela continuasse recebendo as amigas, como se a casa fosse dela, nos momentos em que ele não estivesse lá.

3. Sobre o desfecho dessa história, responda ao que se pede.

a) Qual foi o desfecho dessa história?

Depois da permissão para as visitas de Dona Custódia, às vezes, quando voltava mais cedo, o patrão encontrava as amigas da empregada, com quem até se afeiçoara, a ponto de interessar-se por uma delas, com quem passou a relacionar-se. No entanto, Dona Custódia, ao saber do relacionamento, não admitiu que “seu hóspede” se relacionasse com uma de suas amigas e “foi-se embora para nunca mais”.

b) Trata-se de um desfecho esperado? Por quê?

Não, não foi um desfecho esperado, pois o patrão aceitou que a empregada recebesse as amigas, usando a casa dele como se fosse dela, mas ela não aceitou que ele se envolvesse com uma de suas amigas, sumindo para nunca mais voltar, demonstrando, com essa atitude, ingratidão ou certa insanidade.

4. Classifique os vocábulos que, destacados nos períodos a seguir.

a) “[...] a velhinha podia muito bem dar conta do recado, por que não?”

Pronome interrogativo.

b) “[...] disse que assim sendo iria também passar o dia com uns parentes lá no Rio Comprido.”

Conjunção integrante.

c) “A história se restringe à impressão estranha que teve [...]”

Pronome relativo.

d) “Que diabo ela fizera de seu quadro?”

Pronome interrogativo.

e) “Não admitia que uma amiga fizesse aquilo com seu hóspede.”

Conjunção integrante.

5. Releia o excerto e, em seguida, responda ao que se pede.

E às vezes se acaso regressava mais cedo, detinha-se na sala para bater um papo com as velhinhas, a quem já se ia afeiçoando.

a) Qual é o pronome relativo do trecho? Transcreva-o.

Trata-se do pronome relativo quem.

b) Quais são as características desse pronome relativo?

O pronome relativo quem refere-se somente a pessoas, raramente pode se referir a um ser personificado e vem sempre antecedido de preposição. No caso, substitui os termos “as velhinhas”.

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