As caridades odiosas - Clarice Lispector

Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como ás vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão pequena e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concreto. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança o que me ceifara os pensamentos.

-Um doce, moça, compre um doce para mim.

Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular um lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.

Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balção e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: Um doce para o menino.

De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo.

Perguntei-lhe: que doce você…

Antes de terminar, o menino disse apontado depressa com o dedo: Aquelezinho ali, com chocolate por cima.

Por um instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.

-Que outro doce você quer? Perguntei ao menino escuro.

Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com delicadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. E poupava a minha bondade.

-Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a frente. O menino hesitou e disse: Aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, levantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mesmo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:

-Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém quis dar.

Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento, gratidão, revolta e vergonha. Mas como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de…E para isso fora necessário um menino magro e escuro…E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.

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1. Que forma de expressão do menino comunicava a sua aflição?

A aflição do menino era comunicada pelo olhar.

2. De que maneira a humildade e a timidez do menino se manifestam no primeiro contato com a cronista?

O menino se expressa com "palavras meio engolidas”.

3. Que afirmação da cronista melhor traduz o seu mal-estar causado pela presença do menino?

Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo.

4. Que afirmação da cronista, no último parágrafo, sugere um sentimento de satisfação e plenitude com a experiência vivida?

"...o Sol parecia brilhar com mais força".

5. No texto, a linguagem da cronista e do menino ora expressa sentimentos, ora transmite apenas informações, ora é utilizada para dar uma ordem. Exemplifique essas afirmações.

Alguns exemplos, entre outros: De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo. (expressa sentimentos) O menino estava de pé no degrau da confeitaria. (informa) Precisa sim... (ordena ao menino que aceite outro doce).


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