Leia o capítulo a seguir, que está inserido no livro O caso da Chácara Chão, de Domingos Pellegrini.

Miau

Minie estava na varanda olhando o muro coberto de hera, olhando a chuva, naquela paz de cachorra que já teve suas ninhadas, já enfrentou ladrões, tem sua ração de carinho todo dia, para viver assim contemplando o mundo, quando o portão se abriu e Verali apareceu de guarda-chuva com duas coleguinhas da escola e a gatinha molhada no colo:

— Deixa eu cuidar dela, pai, só hoje, deixa, a molecada estava batendo nela na rua, pai, deixa, só até passar a chuva!

As meninas me olhavam com as mãos juntas. A gatinha me venceu com um longo e sofrido miado.

— Mas só até parar de chover! — avisei várias vezes, enquanto a gata era coberta de carinho, enfiada numa meia de lã, comendo ração de cachorro com leite até a barriga virar uma bola, aí dormiu ronronando.

— Que nome a gente vai dar pra ela, pai?

— Pra que nome se vai embora daqui a pouco?

— Amanhã, pai, agora tá escurecendo!

A gatinha dormia num canto do sofá. Quando acordou, as meninas tinham ido, Verali já estava de pijama e começou a falar com ela:

— Dorme mais, gatinha. Dorme até amanhã, que agora eu tenho de ir dormir, viu? Que nome você quer ganhar?

— Miau — a gata miou e Verali desatou a correr pela casa:

— Miau, pai, ela vai chamar Miau, mãe, Miau!

A chuva parou durante a noite, mas amanheceu chovendo e continuou chovendo. As meninas rodeavam a gatinha, ajoelhadas com as mãos juntas.

— Que é que estão fazendo aí?

Quietas, olhos fechados. Olga insistia, que diabo era aquilo.

— Rezando, mãe, pra não parar de chover...

Olga insistiu que não queria gato em casa, para uma velhice tranquila de Minie, muito menos gata — que, no cio, faz aquele pampeiro no telhado com os gatos tarados. Enquanto isso, Miau comia de novo até a barriga arredondar.

— É que eu passava fome na rua, vô — Verali falava pela gata com uma voz miada.

— Mas por que vô?

— Eu sou a mãe dela, pai, então você é o vô.

Inventou de dar à filhote uma papa de pão e leite. À tarde, parou a chuva e começou a diarreia na gata.

— Se ela for pra rua assim, pai, vai morrer!

— Miau — a gata pedia com o olhar azul-claro; resolvemos esperar passar a diarreia.

Comprei ração de gato na padaria, a gatinha se atirou ao cheiro de peixe, comeu mais do que comia antes. Miau, miou agradecida, voltou a dormir. Vó Filipov, que tem uma dúzia em casa, apareceu com um álbum de grandes fotos de gatos, onde ficamos sabendo que eles dormem dois terços do tempo, enquanto nós dormimos apenas um terço, de modo que parecem preguiçosos mas não são, são gatos, felinos em miniatura, com o mais belo espreguiçar entre os mamíferos, uma exibição de contorcionismo; quem mais consegue lamber tão gentilmente o próprio rabo?

— E agora ela vai dormir no colo do vovô!

Eu vendo tevê, tiros e maremotos na tela, no colo a gatinha enrolada no rabo. Passei o dedo, começou a ronronar. Olga não acreditou quando viu:

— Ih, até você?

No dia seguinte, saiu o sol mas eu me juntei a Verali e as meninas: Miau devia ficar.

— Ao menos até ficar mais grandinha.

— Viu, Miau? Você vai ficar, minha filha!

— Miau!

— Como é seu nome, minha filha?

— Miau!

— Fala obrigado pro vovô!

— Miau!

— E pra vovó!

A gatinha olhou para Olga com os olhos pedintes. Olga riu, muito bem, Miau podia ficar, desde que eu cuidasse. Miau miou agradecendo, e eu passei a ter um relógio vivo. De manhãzinha, meio-dia, cinco da tarde, nove da noite, a gatinha me olha e mia pedindo ração, aproveito para também trocar a água, e eis que ela prefere beber no aquário.

— Eu acho que ela quer beber toda a água pra pegar o Mário, pai.

Mário é o peixinho vermelho que de lá nos olha o tempo todo, quando será que dorme? Miau bebia se esticando para alcançar a água do aquário, depois espreguiçava mais uma vez, ia perseguir mosquitos aos trambolhões, parava para lutar com o pé da cortina, onde se escondia para depois sair caçando uma lagartixa, correndo até a porta, voltando para nos agarrar os pés. Mas, dali a pouco, já estava cochilando de novo, Minie olhando lá da porta, desde filhote ensinada a não entrar em casa, e então chega uma gata e...

— Minie está que nem eu quando via você com alguma namorada, lembra? — Olga cutucou e fingi que não ouvi; mas dali por diante ela passou a chamar Miau de minha amiga.

Uma semana depois, pegou Miau no colo pela primeira vez. Na manhã seguinte, acordou com as patinhas frias de Miau no rosto, enfiou a gata nas cobertas e ficaram as duas ronronando. No mesmo dia foi à cidade comprar uma casinha para a gata. Colocou Miau na casinha, Miau miou agradecendo, ali mesmo se enrolou e inaugurou a casinha com um cochilo. Minie chegou perto, cheirou a casinha, olhou Miau dormindo, deitou ali do lado no tapete onde sempre ficava antes, nos olhou conformada e também fechou os olhos.

— E pensar que dormi rezando aquela noite, pai, pra nunca mais parar de chover!

— Ia ser um dilúvio, filha.

— E você não gosta muito de água, né, Miau?

— Miau — a gatinha abria os olhos para concordar, voltava a cochilar na paz dos gatos.

Agora dorme para sempre, como disse Olga para se consolar. Toca a campainha, só agora vejo que estou escrevendo sem parar faz algumas horas! E Olga ainda não voltou. Seja quem for, não tira o dedo da campainha, vou atender.

PELLEGRINI, Domingos. O caso da Chácara Chão. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 39-42.

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1. O capítulo extraído do livro O caso da Chácara Chão, de Domingos Pellegrini, retrata uma questão central, qual? Apresente-a.

O capítulo lido apresenta a chegada de uma nova integrante de uma família, uma gata, que, a princípio, só é considerada pela menina Verali, mas que, aos poucos, vai ganhando as atenções e os cuidados do resto da família.

2. Releia: “É que eu passava fome na rua, vô”. De quem é essa fala? Como ela é inserida no diálogo que se desenvolve durante essa parte da história? Explique a sua resposta.

Trata-se de uma fala reproduzida pela menina Verali, como se fosse uma fala da gatinha Miau, dirigindo-se ao pai da família, a fim de suplicar que ela possa ficar na casa, dando a ideia de que, na rua, sua vida era difícil.

3. No excerto “A chuva parou durante a noite, mas amanheceu chovendo e continuou chovendo.”, há três orações ligadas por conjunções coordenativas. Que sentidos essas orações imprimem ao contexto? Justifique a sua resposta.

A conjunção “mas”, ao ligar a primeira e a segunda oração, estabelece uma relação de oposição, pois reforça o fato de que a chuva havia parado durante a noite, no entanto, voltara ao amanhecer. Já a conjunção “e”, ao ligar a segunda e a terceira oração, estabelece uma relação de adição, de soma de informação, pois voltara a chover ao amanhecer e a chuva persistia.

4. No período “Eu acho que ela quer beber toda a água [...]”, a segunda oração, iniciada pela conjunção que, liga orações coordenadas ou subordinadas? Por quê?

Trata-se de uma conjunção integrante, que liga orações subordinadas substantivas, visto que é perceptível a relação de dependência entre as duas orações, pois quem acha, acha alguma coisa, determinando a necessidade de um complemento, que acontece por meio da oração subordinada substantiva apresentada.

5. No período composto “Olga não acreditou quando viu [...]”, a segunda oração é introduzida pela conjunção subordinativa quando. Que tipo de oração essa conjunção liga? E que valor semântico ela acrescenta ao contexto?

A conjunção “quando” é uma conjunção subordinativa temporal, que imprime ao contexto em que é empregada a ideia de tempo, ou seja, uma circunstância de tempo.


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