Leia o texto de Vinicius de Moraes, a seguir, para resolver as questões propostas.

A casa materna

Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão têm uma velha ferrugem e o trinco se encontra num lugar que só a mão filial conhece. O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões e samambaias, que a mão filial, fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste.

É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem.

Há um tradicional silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado, sobre o qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em preces, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças e lisas.

Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente. O piano fechado, com uma longa tira de flanela sobre as teclas, repete ainda passadas valsas, de quando as mãos maternas careciam sonhar.

A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô.

E tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras aberturas para os quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso.

Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos passos filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta – pois não há lugar mais propício do que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe.

Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna, sabe por que queima às vezes uma vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia.

A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que se marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre de sua casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais ainda mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.

MORAES, Vinicius de. Vinicius Menino. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 9-11.


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1. A crônica ”A casa materna”, de Vinícius de Moraes, apresenta uma temática bastante peculiar aos contextos familiares. De que temática se trata? Comprove a sua resposta com um trecho do texto.

Trata-se da temática do saudosismo, visto que o narrador passa o tempo todo relembrando coisas, fatos e situações do passado, sempre em um contexto de melancolia e de saudade. Possibilidade de trecho do texto: “A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô”.

2. Em meio às declarações a respeito da casa materna, o narrador acaba afirmando que a “casa materna é o espelho de outras”. O que é possível depreender dessa afirmação?

É possível depreender dessa afirmação que, assim como o narrador sente muita saudade de sua casa materna, espaço das grandes lembranças, das recordações e dos acontecimentos de sua infância, muitas outras casas e muitas outras famílias encontram-se em meio a essa condição, que suscita saudade e necessidade de reaproximação do passado.

3. Em que passagem do texto é possível perceber que a figura paterna já não se encontra mais presente, em função do seu falecimento, e a figura materna, apesar de idosa, ainda reside na casa da família? Transcreva-a.

“Ausente para sempre de sua casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas [...].”

4. Em um determinado momento do texto, o narrador declara que “a casa materna se divide em dois mundos”: o térreo e o andar de cima. Explique, com suas palavras, o que esses espaços representam para o narrador.

Segundo o narrador, a sua casa materna tem dois espaços bem distintos: o andar térreo, espaço em que as reuniões familiares continuam acontecendo, lugar em que as situações cotidianas são vividas, até mesmo os infortúnios; e o andar de cima, lugar em que ficam os objetos antigos, que fazem referência à infância, junto das lembranças, principalmente do pai.

5. O tom emotivo da crônica se acentua quando há a seguinte declaração: “Na estante junto à escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso”. O que é possível entender dessa afirmação? Justifique a sua resposta.

Nesse excerto, o narrador apresenta o momento em que teve contato, pela primeira vez, com a palavra em forma de poesia, que passaria a ser, para ele, algo extremamente importante. Certamente, trata-se de um livro que o faria apaixonar-se pelas palavras em sua forma suprema de apresentação.

6. Releia este trecho:

Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna, sabe por que queima às vezes uma vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia.

Agora, transcreva do trecho lido as três orações subordinadas adjetivas restritivas que ali se encontram.

As três orações subordinadas adjetivas restritivas são: “que lembram a infância”, “em frente ao qual [...] queima às vezes uma vela votiva” e “onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna”.

7. Classifique as orações destacadas no trecho a seguir:

As grades do portão têm uma velha ferrugem / e o trinco se encontra num lugar / que só a mão filial conhece.

A primeira é uma oração coordenada assindética; a segunda corresponde a uma oração coordenada sindética aditiva para a primeira oração e oração principal para a terceira; a terceira é uma oração subordinada adjetiva restritiva. Professor, comente a possibilidade da existência do período misto, além de mencionar o fato de a segunda oração ter duas classificações, em função de estar ligada a duas orações distintas e manter relação com ambas.

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