Leia, atentamente, a crônica de Raquel de Queirós a seguir.

O nosso humilde ofício de escrever

Urna moça escritora pede que eu lhe explique como se faz um romance. Se a gente planeja tudo sistematicamente — o enredo, seus desenvolvimentos, os personagens, a inspiração sociológica ou ‘social’, romântica, histórica etc. E se escreve à mão, à máquina ou em computador. Bem, acho que todo romancista tem o seu processo especial de criar. Émile Zola, por exemplo, planejou a série dos Rougon-Macquart — era a saga de uma família francesa, origem humilde, e suas lutas para conseguir poder e riqueza. Já outros, como por exemplo Dostoiévski, parece que não planejavam nada, deixavam explodir aquele imenso coração torturado.

Mas nós, modestos escribas do Terceiro Mundo, não temos, eu creio, essas audácias criativas. E muito menos eu, que só faço os meus livrinhos quando eles querem sair. Ficam emitindo sinais, incomodando, e então sinto que está na hora de trabalhar. Na verdade sempre comparo a concepção de um livro à concepção de um filho. Sim, a uma gravidez. Quando você vê, o livro já está dentro, vivo e mexendo, bulindo com a sua cabeça, ocupando a cada dia espaço maior, fazendo você levantar de noite para tomar nota de uma frase — um pedaço de diálogo, o rascunho de um conflito. Daí, a sua ideia inicial vai se desenvolvendo, o tema se desdobrando, suscitando situações novas, personagens novos, que às vezes surgem de repente, inesperados; pode ser até num virar de esquina ou num bate-papo de bar. O fio vai se desenrolando do novelo, se embaraça e se desdobra, muda de cor e consistência, até adquirir uma identidade, personalidade, ou, digamos, uma feição própria. De certo tempo em diante você não governa mais a história, são os personagens que mandam.

Eles que exigem a sua coerência, eles que de repente querem falar, e às vezes, com alguma declaração ou atitude inesperada, alteram todo o plano da obra; o que, no meu caso, não é problema maior, pois que o meu plano já de si era fluído, sem programação rigorosa. Outra preocupação do ficcionista é a localização da história. Comigo, mantenho vagas relações com a geografia e a topografia, e, só quando se torna indispensável, conservo o nome real dos locais por onde perambulam as minhas figuras. Ninguém vá procurar no mapa o local verdadeiro onde se situa aquela fazenda, aquele tiroteio, aquela vila ou cidade, Ah, e tem ainda uma das partes mais penosas, que é o batizado dos personagens. Como mãe exigente, quero que cada um mostre quem é através do nome, que o nome lhe assente de cara e alma, e é difícil demais. Nome nenhum parece que dá certo, crio combinações, recorro à memória de infância. Por exemplo, aquela Xavinha de Dôra, Doralina existe no livro tal como foi na vida — com o mesmo nome, personagem secundária, solteirona, beata, dentuça, cara amarela e, no meio disso tudo, uns doces olhos azuis. Para nós lá, olho azul é um luxo raro, uma dádiva especial. E parecia um esperdício de Deus Nosso Senhor dar aqueles olhos à Xavinha, que não merecia. Quanto aos demais protagonistas, os importantes, eu não diria, como Flaubert, que “Madame Bovary c’est moi”, mas você, autor, tem que se meter na pele de cada um dos seus personagens, encarnar neles, de certa forma ser eles — pois que você só conta para lhes dar vida, com a sua própria experiência. Tem que produzir um ser de verdade, não um simples retrato ou caricatura riscada no papel. Quanto ao ato de escrever, propriamente, só O Quinze escrevi de próprio punho, a lápis, num caderno de colegial. Os outros — eu já então tinha ganho uma maquininha Corona, alemã, comprada por meu pai do nosso amigo frei Leopoldo Plass (que tinha os pulmões corroídos por gás tóxico, soldado que fora na Primeira Grande Guerra, e morreu como um santo).

Não entrei na era do computador, convivi com um, na casa de um amigo em Paris, que tinha um computador emprestado. Me deixei tentar, voltei, juntei o dinheiro necessário para comprar o meu micro, mas, na véspera do pagamento, a ministra Zélia me tomou a poupança; teimei, tinha uns dólares que sobraram da viagem, dava para pagar. Aí chegou o assaltante aqui em casa e carregou os dólares, junto com outras coisas. Fiquei abalada, ia desistindo, quando me telefonou um querido amigo de Minas dizendo que arranjara um contrabandista que trazia computadores do Paraguai. Encomendamos os nossos. E, daí a uma semana, o amigo telefona de novo, dizendo que o contrabandista tinha sido preso junto com os computadores. Era evidente que Deus não queria que eu possuísse computador! Ademais, minhas retinas não se davam bem com a telinha de luz tremelicante da máquina. Fiquei pois com a minha pequena Olivetti elétrica, que aliás já são duas, ambas ganhas de presente. Quando vou ao Ceará, já que a voltagem daqui é 110 e a de lá 220, uso a máquina do meu primo Jorge Barreira, um luxo! Nela foi batida grande parte da Maria Moura. E assim deixo aqui descobertos todos os meus segredos profissionais, tão sem importância e rotineiros quanto a obra e a autora que tentava se ocultar atrás deles.

QUEIRÓS, Raquel de. Falso mar, falso mundo. São Paulo: Arx, 2002, p. 71-73.

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1. No texto lido, o eu do cronista é questionado, por uma jovem escritora, sobre o ofício de escrever. Na visão desse narrador, como se dá a execução da arte da escrita?

Segundo o eu do cronista, a escrita pode acontecer de três formas: há escritores como Émile Zola, por exemplo, que planejam aquilo que vão escrever, ou seja, que passam parte de seu tempo organizando como a escrita acontecerá. Há outros, como Dostoiévski, que não planejam nada, apenas transcrevem para o papel aquilo que vem do coração. Mas, ainda conforme as ideias do eu do cronista, há escritores como ele, que escrevem quando as palavras, de fato, querem sair, a qualquer momento e em qualquer lugar, pois não sobrevivem das audácias, mas sim das ideias que vão surgindo sem muita explicação.

2. No terceiro parágrafo, há a seguinte declaração: “Eles que exigem a sua coerência, eles que de repente querem falar, e às vezes, com alguma declaração ou atitude inesperada, alteram todo o plano da obra; o que, no meu caso, não é problema maior, pois que o meu plano já de si era fluído, sem programação rigorosa”.

a) A quem o pronome eles refere-se?

O pronome eles refere-se aos personagens criados por cada escritor.

b) Como se explica a afirmação de que “Eles que exigem a sua coerência [...]”?

Conforme esse excerto, a arte da escrita não é domínio exclusivo dos escritores. Mais que isso, até mesmo os personagens detêm o poder de ditar os rumos daquilo que é escrito. No caso da autora Raquel de Queirós, ela afirma que, na maioria das vezes, seus personagens, conforme vão ganhando forma, é que estabelecem a coerência daquilo que é escrito. E, no caso da autora em questão, isso não é problema, pois seus textos não são fruto de um planejamento rígido.

3. O eu do cronista estabelece uma aproximação entre a concepção de um livro e a concepção de um filho. Explique como essa comparação se dá.

Para o eu do cronista, o livro surge como um filho que, quando você percebe, já está dentro de você, “vivo e mexendo, bulindo com a sua cabeça, ocupando a cada dia espaço maior, fazendo você levantar de noite [...]”, isto é, tomando o seu tempo e ditando o rumo das suas ações conforme a necessidade dele. E, assim que nascem os personagens desse livro, há a preocupação da mãe em relação ao nome deles, que devem mostrar quem eles realmente são. A partir daí, você vive para eles e só conta com a sua própria experiência para que eles “cresçam” da melhor forma possível, como um ser de verdade.

4. Por que a autora afirma, categoricamente, que escrever por meio do computador não era algo destinado a ela? Explique a sua resposta.

Ela faz essas afirmações em função das próprias experiências nesse âmbito, que foram frustradas: conviveu com o computador de um amigo, que tinha um emprestado em casa; tentou juntar dinheiro para comprar um, mas um plano do governo confiscou sua poupança; pegou uns dólares que tinha para comprar um, mas um assaltante entrou em sua casa e levou o dinheiro; por fim, quando decidiu comprar de um contrabandista, este foi preso com os computadores. Dessa forma, declara que estava claro que Deus não queria que ela tivesse um computador.

5. Classifique as orações subordinadas substantivas, retiradas do texto, destacadas a seguir:

a) “Uma moça escritora pede que eu lhe explique como se faz um romance.”

Oração subordinada substantiva objetiva direta.

b) “[...] acho que todo romancista tem o seu processo especial de criar.”

Oração subordinada substantiva objetiva direta.

c) “Era evidente que Deus não queria que eu possuísse computador!”

Oração subordinada substantiva subjetiva e oração subordinada substantiva objetiva direta.

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