Leia esta crônica de Rubem Braga.
A palavra
Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito – como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento – e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven – e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído – talvez palavras de algum poeta antigo – foi despertar melo- dias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo, iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
PROENÇA FILHO, Domício. (Org.). Pequena antologia do Braga. Rio de Janeiro: Record, 1997.
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1. Na crônica A palavra, há uma referência ao ofício de escrever, apontando-o como “imprudente”, “espontâneo” e, também, uma forma “de viver em voz alta”, uma metáfora que representa a essência do ato da escrita. O que o eu do cronista quis afirmar ao utilizar essa metáfora?
“Viver em voz alta”, no contexto empregado, representa a capacidade de o escritor tornar público, transformar em texto, todos os seus pensamentos, seus sentimentos, suas intenções, etc., por meio dos seus escritos.
2. Segundo o eu do cronista, quais efeitos as palavras podem provocar nos leitores? Explique a sua resposta.
Para ele, as palavras podem ser positivas, gerando conforto e fazendo bem àqueles que as leem. Elas podem trazer à lembrança aquilo que se encontrava, de alguma forma, esquecido. No entanto, elas podem ferir e até entristecer alguns, quando são proferidas com certa imprudência e desatenção.
3. Releia este período: “Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém.”. Os termos destacados são, respectivamente, advérbio e locução adverbial. Classifique-os, considerando as circunstâncias que imprimem ao contexto em que se encontram.
“Agora”, advérbio de tempo; “outro dia”, locução adverbial de tempo.
4. Observe este trecho retirado do texto e resolva os exercícios propostos:
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven [...]
a) Quais são as duas locuções adverbiais presentes no excerto lido? Transcreva-as, classificando-as.
As locuções adverbiais são: “Um dia” – locução adverbial de tempo e “em casa” – locução adverbial de lugar.
b) O termo “distraída” corresponde a um adjetivo ou a um advérbio? Explique a sua resposta.
Trata-se de um adjetivo, pois, ao passar o trecho para o masculino, por exemplo, tem-se: Um dia o meu amigo estava sozinho em casa, distraído [...], obtendo-se a forma masculina do vocábulo, o que comprova que se trata de uma palavra variável.
5. Se ao enunciado “[...] e o canário começou a cantar alegremente.”, antes do advérbio “alegremente” fossem acrescidos os advérbios de modo vigorosamente e veementemente, como a frase deveria ser reescrita? Apresente-a e explique a sua escolha.
[...] e o canário começou a cantar vigorosa, veemente e alegremente, pois quando dois (ou mais) advérbios terminados em -mente aparecerem em sequência, é correto usar o sufixo apenas no último.
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