Leia algumas estrofes do poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, de
Manoel de Barros.
[...]
IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!
V
Escrever nem uma coisa Nem outra –
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.
VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.
VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.
[...]
BARROS, Manoel de. O guardador de ‡guas. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 55-65.
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1. A partir da leitura realizada, observe o título do poema e explique por que esse texto pode ser considerado um “retrato”.
No contexto estabelecido, o eu lírico cria imagens por meio das palavras, que, segundo ele, ajudam a compor tudo e nada ao mesmo tempo, conforme ele explica na estrofe V. Por exemplo: “Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos”, “Palavras têm espessuras várias”, “Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes”.
2. Releia estes versos:
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.
a) O que o eu lírico quis afirmar ao estabelecer essa comparação entre o poeta e os vaga-lumes?
Segundo o eu lírico, o que permite que os vaga-lumes estejam acesos e vivos é a escuridão, um elemento capaz de provocar a luz. Em se tratando do poeta, este também se move e produz em função de antíteses: ele constrói e desconstrói, por meio das palavras, explica e “desexplica”.
b) Como a palavra “desexplicar” foi formada?
Essa palavra foi formada por meio do acréscimo de um prefixo (des-) ao verbo explicar.
c) A palavra desexplicar não está dicionarizada, mas foi utilizada como uma espécie de antônimo do vocábulo explicar. Converse com seu professor, pesquise, troque ideias com seus colegas de sala e responda que nome se dá, dentro da língua portuguesa, à criação de uma palavra nova.
Trata-se de um neologismo. Nesse contexto, por meio do emprego de uma palavra nova derivada de outra já existente.
3. A postura do eu lírico, ante a vida, pode ser vista como uma “inspiração libertária”, diante do uso de uma linguagem em que a liberdade é experimentada por meio da reinvenção dessa linguagem. Explique como essa afirmação pode ser comprovada a partir da leitura da estrofe VII.
Na estrofe VII, o eu lírico alega que “o sentido normal das palavras não faz bem ao poema”; dessa forma, o poeta deve procurar o uso impuro dos termos por meio de um relacionamento que transcenda regras e normas, que corrompa e que subverta.
4. Observe o termo agramaticalidade, usado na estrofe VI.
a) Que recursos da língua foram utilizados para a formação dessa palavra?
Foi acrescentado o prefixo “a” e os sufixos “al” + “dade” ao radical “gramatic”. O “i” é uma vogal de ligação.
b) Que significado essa palavra adquire no contexto em que foi empregada?
Trata-se da possibilidade de não fazer uso da gramática, ou seja, da transgressão das normas.
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