A seguir, você vai ler parte do primeiro capítulo do romance O menino do pijama listrado. A obra foi lançada em 2006, mas a narrativa se passa nos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial.
1 - Bruno faz uma descoberta
Certa tarde, quando Bruno chegou em casa vindo da escola, surpreendeu-se ao ver Maria, a governanta da família – que sempre mantinha a cabeça abaixada e jamais levantava os olhos do tapete –, de pé no seu quarto, tirando todos os seus pertences do guarda-roupa e arrumando - -os dentro de quatro caixotes de madeira, até mesmo aquelas coisas que ele escondera no fundo e que pertenciam somente a ele e não eram da conta de mais ninguém.
“O que você está fazendo?”, ele perguntou tão educadamente quanto pôde, pois, embora não estivesse contente por chegar em casa e descobrir alguém remexendo nas suas coisas, sua mãe sempre lhe dissera para tratar Maria com respeito e não simplesmente imitar a maneira com que seu pai a tratava. “Tire as mãos das minhas coisas."
Maria sacudiu a cabeça e apontou para a escada atrás dele, onde a mãe de Bruno acabara de aparecer. Era uma mulher alta, de longos cabelos ruivos, presos numa espécie de rede atrás da cabeça; ela estava retorcendo as mãos em sinal de nervosismo, como se houvesse algo que ela não quisesse falar ou alguma coisa em que não quisesse acreditar.
“Mãe”, disse Bruno, marchando em direção a ela, “o que está acontecendo? Por que a Maria está mexendo nas minhas coisas?”
“Ela está fazendo suas malas”, a mãe explicou.
“Fazendo minhas malas?”, ele perguntou, repassando rapidamente os eventos dos últimos dias para avaliar se fora um mau menino ou se dissera em voz alta as palavras que ele sabia não poder dizer e, por isso, estava sendo mandado embora. Mas não conseguiu pensar em nada que justificasse tal pensamento. Na verdade, durante os últimos dias ele se comportara de maneira perfeitamente decente com todos e não conseguia se lembrar de ter criado nenhuma confusão. “Por quê?”, ele perguntou então. “O que eu fiz?”
A mãe já havia entrado em seu próprio quarto a essa altura, mas Lars, o mordomo, estava lá, fazendo as malas dela também. Ela suspirou e jogou as mãos para o ar em sinal de frustração antes de marchar de volta à escada, seguida por Bruno, que não ia deixar o assunto morrer sem uma explicação satisfatória.
“Mãe”, ele insistiu. “O que está havendo? Estamos de mudança?”
“Venha comigo até o andar de baixo”, disse ela, levando-o até a ampla sala de jantar onde o Fúria estivera para comer com eles na semana anterior. “Conversaremos lá embaixo.”
Bruno desceu as escadas correndo e até a ultrapassou na descida, de maneira que já estava esperando pela mãe na sala de jantar quando ela chegou. Ele observou-a sem dizer nada por um momento e pensou consigo que ela não devia ter aplicado corretamente a maquiagem naquela manhã, pois as órbitas dos olhos estavam mais avermelhadas do que de costume, como os seus próprios olhos ficavam quando ele criava confusão e se metia em encrenca e acabava chorando.
“Veja, Bruno, não há motivo para se preocupar”, disse a mãe, sentando-se na cadeira na qual se sentara a bela mulher loira que viera jantar acompanhando o Fúria e que acenara para ele quando o pai fechou a porta. “Na verdade, acho que será uma grande aventura.”
“Que aventura?”, ele perguntou. “Estão me mandando embora?”
“Não, não é apenas você”, ela disse, parecendo que ia abrir um sorriso momentâneo, mas mudando de ideia. “Todos nós vamos embora. Seu pai e eu, Gretel e você. Todos os quatro.”
Bruno pensou a respeito e franziu o cenho. Não o incomodava em especial se Gretel fosse mandada embora, porque ela era um Caso Perdido e só o metia em encrencas. Mas parecia um pouco injusto que todos tivessem que acompanhá-la.
“Mas para onde?”, ele perguntou. “Aonde vamos exatamente? Por que não podemos ficar aqui?”
“É o trabalho do seu pai”, explicou a mãe. “Sabe como isto é importante, não sabe?”
“Sim, é claro”, disse Bruno, acenando com a cabeça, pois sempre havia na casa muitos visitantes – homens em uniformes fantásticos, mulheres com máquinas de escrever das quais ele deveria manter longe as mãos sujas –, e eram todos sempre muito educados com o pai e diziam que ele era um homem para ser observado e que o Fúria tinha grandes planos para ele.
“Bem, às vezes, quando uma pessoa é muito importante”, prosseguiu a mãe, “o homem que o emprega lhe pede que vá a outro lugar, porque lá há um trabalho muito especial que precisa ser feito.”
“Que tipo de trabalho?”, perguntou Bruno, porque, se fosse honesto consigo mesmo – e ele sempre tentava ser –, teria de admitir que não sabia ao certo qual era o trabalho do pai.
Na escola todos conversaram um dia sobre seus pais, e Karl dissera que seu pai era quitandeiro, o que Bruno sabia ser verdade, porque o homem cuidava da quitanda no centro da cidade. E Daniel dissera que seu pai era professor, o que Bruno sabia ser verdade, porque o homem ensinava aos meninos maiores, dos quais era sempre melhor manter distância. E Martin dissera que seu pai era chef de cozinha, o que Bruno sabia ser verdade, porque, nas vezes em que o homem vinha buscar Martin na escola, sempre vestia bata branca e avental xadrez, como se tivesse acabado de deixar a cozinha.
Mas, quando perguntaram a Bruno o que seu pai fazia, ele abriu a boca para dizer-lhes e então percebeu que ele próprio não sabia. Só era capaz de dizer que seu pai era um homem para ser observado e que o Fúria tinha grandes planos para ele. Ah, e que ele também tinha um uniforme fantástico.
“É um trabalho muito importante”, disse a mãe, hesitando por um momento. “Um trabalho que precisa ser feito por um homem muito especial. Você consegue entender isso, não é?”
“E todos nós temos que ir também?”, indagou Bruno.
“Claro que sim”, disse a mãe. “Você não gostaria que seu pai fosse até o novo trabalho e se sentisse solitário lá, gostaria?”
“Acho que não”, disse Bruno.
[...]
“Mas e quanto à nossa casa?”, perguntou Bruno. “Quem vai cuidar dela enquanto estivermos longe?”
A mãe suspirou e olhou o quarto ao redor, como se nunca mais fosse vê-lo novamente.
Era uma casa muito bonita e tinha ao todo cinco andares, se incluirmos o porão, onde o cozinheiro preparava toda a comida e Maria e Lars sentavam-se à mesa discutindo um com o outro e chamando-se de nomes que não se deviam empregar. E se considerássemos o pequeno quarto no topo da casa, que tinha as janelas oblíquas através das quais Bruno conseguia ver até o outro lado de Berlim, se ficasse na ponta dos pés e segurasse firme no parapeito.
“Teremos que fechar a casa por enquanto”, disse a mãe. “Mas voltaremos algum dia.”
“Mas e quanto ao cozinheiro?”, perguntou Bruno. “E Lars? E Maria? Eles não vão ficar morando aqui na casa?”
“Eles vêm conosco”, explicou a mãe. “Mas agora basta de perguntas. Talvez seja melhor você subir e ajudar Maria a fazer as malas.”
[...]
Ele foi vagarosamente até as escadas, segurando o corrimão com uma das mãos, e se perguntou se a casa nova, onde seria o novo trabalho, tinha um corrimão tão bom de escorregar quanto aquela. Pois o corrimão daquela casa vinha desde o andar mais alto – começava do lado de fora do pequeno quarto onde, se ele ficasse na ponta dos pés e segurasse firme no parapeito da janela, era possível ver até o outro lado de Berlim – até o piso térreo, bem diante das duas enormes portas de carvalho. E o que Bruno mais gostava de fazer era subir a bordo do corrimão no andar de cima e escorregar pela casa toda, fazendo barulho de vento ao longo do caminho.
[...]
O corrimão era a melhor coisa da casa – além do fato de vovô e vovó morarem tão perto –, e quando pensou nisso ele se perguntou se eles também viriam até o emprego novo e acreditou que sim, pois seria impossível deixá-los para trás. Ninguém precisava muito de Gretel, porque ela era um Caso Perdido – seria bem mais fácil se ela ficasse para tomar conta da casa –, mas vovô e vovó? Aí já era outra história.
Bruno subiu devagar as escadas até seu quarto; porém, antes de entrar, olhou para trás e para baixo na direção do piso térreo e viu a mãe entrando no escritório do pai, que dava de frente para a sala de jantar – e onde era Proibido Entrar em Todos os Momentos Sem Exceção –, e escutou-a falando alto com ele, até que o pai falou mais alto do que a mãe era capaz, e isso terminou com a conversa entre eles. Então a porta do escritório se fechou, e, como Bruno não conseguiu mais ouvir nada, pensou que seria boa ideia voltar ao seu quarto e assumir a tarefa de fazer as malas, porque senão Maria era capaz de retirar todos os seus pertences do guarda-roupa sem o devido cuidado e consideração, até mesmo as coisas que ele escondera no fundo e que pertenciam somente a ele e não eram da conta de mais ninguém.
John Boyne. O menino do pijama listrado. Trad. Augusto Pacheco Calil. São Paulo: Seguinte, 2007. p. 9-17.
1. Explique as diferentes estratégias empregadas por Adriana Falcão e John Boyne para marcar a divisão dos capítulos.
A autora deixa um espaço na página para marcar a divisão dos capítulos, enquanto o autor prefere numerar e intitular cada um.
2. Os capítulos iniciais de um romance costumam contextualizar a narrativa.
a) Em que cidade Bruno e a família dele moram?
Em Berlim, na Alemanha.
b) Como se revela a condição econômica privilegiada da família?
A família vive em uma casa grande, com cinco andares, e tem vários funcionários.
c) O que explica a necessidade de mudança da família de Bruno?
O cargo de seu pai.
3. Os dois primeiros parágrafos já colocam o protagonista Bruno diante de um problema.
a) O que está acontecendo? Que palavra sugere que o acontecimento é algo estranho na rotina do personagem?
A governanta está ar - rumando as malas dele e mexendo em coisas que ele considera particulares. A palavra é surpreendeu(-se).
b) Compare esses parágrafos aos capítulos de A máquina. O ritmo da narrativa é o mesmo? Explique.
Não. O menino do pijama listrado já se inicia com uma ação e apresenta um ritmo mais rápido do que A máquina, cujos capítulos reproduzidos descrevem a cidade de Nordestina e não apresentam ações significativas logo de início.
4. Diferentemente de um conto, que é uma narrativa breve, os romances têm espaço para o aprofundamento da trama e o detalhamento de passagens. Releia o seguinte parágrafo.
“Na escola todos conversaram um dia sobre seus pais, e Karl dissera que seu pai era quitandeiro, o que Bruno sabia ser verdade, porque o homem cuidava da quitanda no centro da cidade. E Daniel dissera que seu pai era professor, o que Bruno sabia ser verdade, porque o homem ensinava aos meninos maiores, dos quais era sempre melhor manter distância. E Martin dissera que seu pai era chef de cozinha, o que Bruno sabia ser verdade, porque, nas vezes em que o homem vinha buscar Martin na escola, sempre vestia bata branca e avental xadrez, como se tivesse acabado de deixar a cozinha."
a) Essa passagem se refere a um tempo simultâneo ao das ações narradas no capítulo? Explique sua resposta.
Não. São memórias de Bruno.
b) Qual é o tema do parágrafo?
O parágrafo informa as profissões dos pais dos colegas de escola de Bruno.
c) Como os exemplos citados ajudam o leitor a entender que há algo enigmático envolvendo o pai de Bruno?
Os exemplos mostram que é muito fácil reconhecer a profissão de alguém, o que não acontece no caso do pai de Bruno, já que nem mesmo ele sabe ao certo o que o pai faz.
d) Que outras informações confirmam a existência desse mistério?
A proibição de entrada no escritório do pai, as várias visitas de profissionais aparentemente importantes e a presença de um personagem conhecido apenas pelo nome Fúria.
5. Analise a maneira como a mãe de Bruno fala com ele. “‘É o trabalho do seu pai’, explicou a mãe. ‘Sabe como isso é importante, não sabe?’”
a) Ao perguntar “não sabe?”, a mãe espera qual comportamento de Bruno?
A mãe espera que ele concorde com a ideia que ela apresentou.
b) Copie outra pergunta da mãe com a mesma finalidade.
“Você consegue entender isso, não é?” ou “Você não gostaria que seu pai fosse até um novo trabalho e se sentisse solitário lá, gostaria?”. c) Se o autor optasse por construções mais informais, como poderia substituir “não sabe?”?
Poderia usar “né?”.
6. Os capítulos iniciais sugerem o tipo de relação existente entre os personagens.
a) O que se revela sobre a relação entre a mãe e o pai de Bruno no segundo parágrafo? Explique sua resposta.
O pai e a mãe não parecem se dar bem, já que a mãe o critica indiretamente ao exigir que Bruno se comporte com os empregados da casa de modo menos grosseiro que o pai.
b) Em que outra passagem essa informação é reforçada?
Na passagem em que a mãe e o pai gritam um com o outro no escritório.
7. Retome, agora, a caracterização do protagonista.
a) Cite e justifique duas características que você atribuiria a ele.
Resposta pessoal. Sugestões: obediente ou maduro, porque aceita as explicações da mãe sem discutir; observador, porque se lembra de detalhes dos pais dos colegas; preocupado, porque imagina, a princípio, que a mudança decorra de algum erro seu; inocente: porque não reconhece que a mãe havia chorado.
b) A frase “Tire as mãos das minhas coisas.”, no segundo parágrafo, foi dita por Bruno? Explique sua resposta.
Não. É uma frase semelhante à que usaria o pai e que ele evita repetir, seguindo as orientações de sua mãe.
8. Embora seja um romance, essa obra assemelha-se em alguns aspectos a uma fábula, gênero textual cujo maior destaque é o ensinamento moral transmitido pela narrativa. Leia o boxe “Sabia?” e o trecho final do livro, apresentado a seguir, e reflita: com que intenção teria sido produzido esse romance?
E assim termina a história de Bruno e sua família. Claro que tudo isso aconteceu há muito tempo e nada parecido poderia acontecer de novo. Não na nossa época.
John Boyne. O menino do pijama listrado. Trad. Augusto Pacheco Calil.São Paulo: Seguinte, 2007. p. 186.
Espera-se que os alunos percebam que o romance pode ter sido escrito com a intenção de evitar que outros episódios semelhantes ao extermínio de pessoas durante a Segunda Guerra voltem a acontecer. O romance pode ser considerado uma crítica e um alerta.
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