Leia um texto de José Carlos Brandão para resolver os exercícios propostos.
Escrever como as lavadeiras de Graciliano
Eu pretendia ficar com a última, ou as duas últimas frases do Mestre Graça, o enfezado Graciliano Ramos, que escrevia com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol, segundo João Cabral, e lhe bastava, porque escrevia com uma peixeira na mão para ter a certeza de que diria bem, mas a citação ficaria incompleta, perderia a delicadeza que o sábio bruto não tinha, aliás, não mostrava de ordinário, à flor d’água ou à flor da pele, e ficaria fora a real introdução para o que eu pretendo dizer.
Então lá vai. Afiai os ouvidos e ouvi. Se eu souber que ouviram, lendo, apenas ao que diz Graciliano, dou-me por bem pago. Apurai os ouvidos:
“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes.
Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”
Há quem pense que escrever é fácil. E é: basta juntar uma palavra atrás da outra, pesar, sopesar, ver se soa bem, se não se está dizendo besteira... Compliquei? É tão fácil dizer besteira. É tão fácil não dizer coisa nenhuma.
O que eu queria dizer é que é fácil escrever hoje, com o computador, que faz tudo por nós, ou quase tudo, facilita a vida que é uma maravilha. Eu queria ver você escrever no tempo de Graciliano, de Machado, Vieira, Santo Agostinho.
[...]
Dizem que Agostinho escreveu trezentas e trinta e duas obras, dizem outros que foram mais de mil e quinhentas, mas, em qualquer caso, escreveu muito mais e bem do que a maioria dos escritores, num idioma rude como o dos romanos, mas tornando-o maleável, apto à perquirição filosófica, e poético, porque se encantava com as palavras e com a beleza do que dizia.
Como um pobre escrevinhador de hoje se sairia dessa empreitada colossal, acima das forças humanas, que era escrever? Escreveríamos? Acomodados à facilidade do computador, conseguiríamos desenvolver essa habilidade tão primária que parece estarmos pela primeira vez na história formulando uma frase, gravando-a de forma que transmita uma ideia, torne-a viva, e que as suas palavras soem com beleza, como se para esse encantamento fossem feitas?
Tornou-se tão sofisticado e artificial escrever, que só mesmo lembrando as lavadeiras de Graciliano. Um viva à simplicidade do mestre, que busca na natureza as suas imagens, as suas parábolas. A comparação com as lavadeiras vale por uma parábola.
Fizesse o escritor com sua página escrita o que faz a lavadeira com a roupa suja à beira do riacho, que molha e torce, e novamente molha e torce, coloca anil, ensaboa, para de novo torcer e torcer, e, enfim, enxaguar, dar mais uma molhada, tirar a água excedente com a mão, surrar com raiva na laje, torcer novamente duas e três e mais vezes, até não pingar do pano uma só gota. Somente então pendura a roupa lavada para secar ao sol, sabendo que, por um acaso frequente, uma sujeira de um bicho, da própria água, do vento, de uma distração, poderia levá-la a repetir toda a operação.
Acrescentei esse final, a parte que leva a repetir a operação, não para corrigir o mestre, que sabia disso, mas para alertar os leitores de que um texto muitas vezes sai falho, uma pequena sujeira pode levar o escritor a reescrever o texto – como a lavadeira a lavar novamente a roupa se descobriu uma pequena imperfeição.
E por fim a última lição do mestre: a palavra não foi feita para brilhar, mas para dizer. Amo a beleza da palavra, mas a sua função é, antes de tudo, dizer. Está bonito o texto, portanto bom? A beleza é enganosa, temos que nos lembrar de que o homem criou a palavra porque precisava dizer alguma coisa. O texto é belo e coerente com o que quero dizer? Esta deve ser a questão.
Há quem pense que escrever é fácil. Vá lavar roupa na beira do rio para ver se é fácil.
BRANDÃO, José Carlos. Disponível em: <www.recantodasletras.com.br/cronicas/970869>.Acesso em: 3 abr. 2017.
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1. A crônica lida remete-nos a um tema muito pertinente no contexto escolar. De que tema o texto trata? Explique.
A crônica de José Carlos Brandão tem como tema central a arte de escrever, apresentando essa arte em meio a contraposições: simples, complicada, realizada com mais precisão pelos escritores de épocas passadas ou pelas mãos dos autores contemporâneos.
2. O eu do cronista começa as suas divagações apresentando um trecho do célebre autor brasileiro Graciliano Ramos. Releia o 3º , 4º e 5º parágrafos, que apresentam a fala de Graciliano, e escreva o que o autor da segunda fase modernista brasileira quis afirmar nesse excerto.
O autor quis estabelecer uma comparação entre o ato de escrever e o trabalho das lavadeiras de Alagoas. Ele descreve, minuciosamente, o trabalho delas, como os escritores deveriam fazer, realizando o processo da escrita com minúcias e zelo, até que as palavras, de fato, digam algo.
3. Por que, segundo o narrador, escrever, na atualidade, é muito mais fácil que outrora? Justifique a sua resposta.
Conforme o narrador, na atualidade, escrever tornou-se muito mais fácil e, até mesmo, superficial, em função das facilidades do computador e da forma leviana como alguns escritores têm realizado a sua função. Além disso, o tempo é outro fator que estabelece a grandeza da escrita: antigamente, gastava-se o tempo necessário para que as palavras se aprumassem; hoje, “estamos no tempo da pressa, do descartável, do virtual”.
4. Releia este trecho:
Há quem pense que escrever é fácil. E é: basta juntar uma palavra atrás da outra, pesar, sopesar, ver se soa bem, se não se está dizendo besteira... Compliquei? É tão fácil dizer besteira. É tão fácil não dizer coisa nenhuma.
Agora, retire dele uma palavra formada por:
a) derivação prefixal: Sopesar
b) derivação sufixal: Besteira
Observe o termo destacado no excerto a seguir:
“E por fim a última lição do mestre: a palavra não foi feita para brilhar, mas para dizer. Amo a beleza da palavra, mas a sua função é, antes de tudo, dizer.”
Agora, analise essa mesma palavra no seguinte período:
“Ducrot considera que a concepção enunciativa do sentido permite pensar na hipótese que o dito denuncia o dizer [...].”
O vocábulo dizer, considerando os processos de formação de palavras, nesses dois contextos, tem a mesma classificação? Explique a sua resposta.
Nos contextos apresentados, o vocábulo dizer apresenta classificações distintas. No primeiro caso, trata-se do verbo dizer, palavra primitiva que dá origem à palavra derivada desdizer, por exemplo. No segundo trecho, acompanhado do artigo o, o vocábulo dizer transforma-se em uma palavra substantivada; portanto, trata-se de uma derivação imprópria.
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