Dr. Knock, do dramaturgo francês Jules Romains, é uma sátira que aborda o poder dos médicos sobre a credulidade humana.

Para que você compreenda melhor a profunda ironia que permeia o percurso argumentativo de Paulo Autran, saiba que os escritores a que ele faz referência são talentosos dramaturgos, de épocas bem distintas, que, em diálogos mordazes e inteligentes, criticaram a hipocrisia, os desmandos e a corrupção da sociedade em que viveram.



Resposta estupefata a uma mãe indignada

Pundonorosíssima senhora,

Só tomei conhecimento de sua carta ao Correio do Povo, agora, no meu descanso de Paraty, quando fui ler tudo que a imprensa gaúcha publicou sobre a temporada de Dr. Knock (e não foi pouco, graças a Deus). Por essa razão, minha resposta chega com tanto atraso.

Sua carta preocupou-me, porque a senhora diz ter ouvido palavrões no meu espetáculo, quando, aliás, por um mero acaso, ele não os tem. Acredito que tenha havido uma pequena confusão: acho possível que a senhora e suas filhas mocinhas tenham ouvido palavrões ao pôr os pés fora de casa, durante o trajeto para o teatro, como todos nós ouvimos, diariamente, na rua, nos táxis, no trabalho, nas escolas, nas lojas e nas reuniões sociais, em toda parte, não foi? Isso, aliás, é muito compreensível porque o palavrão, tão usado pelos melhores escritores clássicos como Aristófanes, Plauto, Shakespeare, Gil Vicente, para só citar uns poucos, tem uma função importante na linguagem humana, que uma pessoa medianamente culta não pode desconhecer. O palavrão faz parte da cultura de qualquer povo. Suas filhas, se são mocinhas como a senhora diz, se estudam, leem, enxergam e ouvem bem, como é de se supor, conhecem todos os palavrões do nosso saboroso idioma pátrio. O contrário é que seria muito estranhável e nesse caso seria aconselhávelvsubmetê-las a um teste de inteligência, para ver se estão tendo um desenvolvimento normal, não acha?

Minha pundonorosíssima senhora, o Teatro, o bom Teatro é, deve ser, um espelho de nossa realidade, da sociedade em que se vive, uma luz iluminando em profundidade o ser humano. E o que se vê dentro dos corações, estômago, intestinos e bexigas sociais ou psicológicos, não pode infelizmente ser tachado de bonitinho. Dizer sempre que está tudo bem, tudo certinho, tudo bonito, isso sim é ser mentiroso e hipócrita; é pecar contra a Verdade e a Moral. A senhora não acha?

Quando seu filho pequeno, que não foi ao teatro, crescer e ler a obra-prima que é o Knock do filósofo Jules Romains, ou a modesta adaptação bem abrasileirada que dele fiz propositalmente, talvez venha a discordar da opinião da mãe e achar que Knock é “Cultura” sim, até mesmo no sentido limitado em que a senhora emprega a palavra.

O espetáculo que fiz do Dr. Knock, minha senhora, tentou refletir o nosso subdesenvolvimento em todas as áreas, inclusive a cultural, como estamos vendo, assimilando as formas da chanchada tão encontradiças nas nossas antigas revistas teatrais, em Martins Pena, em Antônio José, ou em Moliére. Tentou denunciar mazelas próprias do nazismo e do fascismo, usando a Medicina como pretexto. Usei, comicamente, recursos ditos “grosseiros” para denunciar ideias muito mais perniciosas e maléficas do que a simples “grosseria”. Fiz mesmo questão de mostrar toda a “grosseria” que está por trás da “fachada” hipócrita e bem-comportada de todos os doutores Knocks imortais que pregam direta ou indiretamente o fascismo.

Pensando bem, a única maneira de a senhora poder educar suas filhas na ignorância das “misérias” do mundo, seria mudar-se para uma fazenda num lugar ermo e distante (será que ainda existe?) ou para uma ilha deserta (Walt Disney deve ter o endereço), mandar erguer a toda a volta uma muralha bem alta, não permitir a entrada de jornais ou revistas, pois estes mostram sempre os horrores e as imoralidades que acontecem a todos os segundos no mundo e isso poderia chocá-las, não é? Proibir terminantemente qualquer contato com qual- quer tipo de arte (porque mesmo a música, no fundo, é sensual, e a sensualidade, virou, mexeu, começa a suscitar ideias pecaminosas). Não permitir a entrada de livros. (Pensei, inicialmente, que a senhora poderia levar algumas vidas de santos e a Bíblia, mas, refletindo melhor, as tentações de Santo Antão, sob um certo ângulo, são um perigo, e cheguei à conclusão de que vida de santo não é leitura para mocinhas “de bem”). Quanto à Bíblia, minha senhora, encarada sob o prisma de uma certa moralidade doméstica, é um horror! Conta cousas terríveis e além do episódio da maçã e do erotismo de Salomão, chega a insinuar que uma adúltera pode ser perdoada, imagine só! Televisão, jamais. Quanto aos empregados, é melhor contratar só eunucos mudos (não sei se há muitos disponíveis, mas uma mãe zelosa sempre acaba encontrando algum). Mesmo assim, olho neles! Ah! eu ia recomendar à senhora que não deixasse nunca que suas filhas viessem a saber o sentido de expressões como sense of humour, blague, etc., mas percebi a tempo que seria uma recomendação inútil, porque elas não correriam esse perigo.

Acredito que, assim, a senhora livrará suas filhas de todo o mal, amém. Até o dia infeliz em que uma bomba atômica venha perturbar sua tranquilidade e a de todos nós. Todos.

Desejando que, dentro da Tradição de sua Família, a senhora continue a se

expressar com tanta Propriedade, apresento-lhe minhas saudações.

Paraty, RJ.

AUTRAN, Paulo. Resposta estupefata a uma mãe indignada. In: ______ . Atores autores.

São Paulo: Clube do Livro, 1987. p. 115-118.

A carta de leitor é um gênero textual que tem um destinatário específico e serve para divulgar posicionamentos e opiniões daqueles que leem jornais e revistas.

Esse tipo de carta tem a finalidade de promover um debate de ideias e de demonstrar que os meios de comunicação acatam os pontos de vista de seus leitores e os respeitam.

Com relação à carta lida anteriormente, responda às questões a seguir.

1. Quem é o remetente (emissor) e o destinatário (receptor)?

O remetente é o ator Paulo Autran e o destinatário é uma mãe a quem o ator se dirige como “Pundonorosíssima senhora”.

2. Qual é a crítica que Paulo Autran recebe? Como ele se posiciona com relação a ela?

Transcreva um trecho do texto no qual é evidente a defesa de seu ponto de vista.

Paulo Autran recebe a crítica de que usou “palavrões” em sua peça, o que desagradou a mãe e a fez abandonar o espetáculo. O ator não concordou com essa mãe e ironizou o fato de que a realidade é cheia de “palavrões” e nela, provavelmente, os filhos dessa mãe podiam ouvi-los. Sua argumentação é evidenciada no trecho: “Sua carta preocupou-me, porque a senhora diz ter ouvido palavrões no meu espetáculo, quando, aliás, por um mero acaso, ele não os tem. Acredito que tenha havido uma pequena confusão: acho possível que a senhora e suas filhas mocinhas tenham ouvido palavrões ao pôr os pés fora de casa, durante o trajeto para o teatro, como todos nós ouvimos, diariamente, na rua, nos táxis [...]”.

3. No 2º- parágrafo, considerando que seu espetáculo, “por um mero acaso”, não tem palavrões, o emissor:

a) levanta uma hipótese. Explicite-a.

Para ele, a mãe e as filhas ouviram os palavrões durante o trajeto para o teatro, como todos nós, muitas vezes, ouvimos ao pôr os pés fora de casa.

b) expõe sua opinião sobre o palavrão. Identifique e transcreva-a.

Para ele, o palavrão tem uma função importante na linguagem humana e faz parte da cultura de qualquer povo, ou seja, está presente na sociedade de maneira geral.

c) apresenta um argumento de prova concreta para fundamentar sua opinião. Aponte-o.

O autor afirma que grandes escritores clássicos utilizavam o palavrão em seus textos.

4. Releia este trecho do texto.

Minha pundonorosíssima senhora, o Teatro, o bom Teatro é, deve ser, um espelho de nossa realidade, da sociedade em que se vive, uma luz iluminando em profundidade o ser humano.

Nesse excerto, o autor emprega, de forma bem expressiva, duas metáforas totalmente significativas ao contexto. Transcreva e explique cada uma delas.

Primeira metáfora: “[...] o Teatro, o bom Teatro é, deve ser, um espelho de nossa realidade, da sociedade em que se vive [...]”: Segundo o emissor, o texto teatral deve refletir o momento histórico em que se vive, denunciando as mazelas e as hipocrisias presentes na sociedade.

Segunda metáfora: “[...] uma luz iluminando em profundidade o ser humano.” Aqui, o remetente afirma que o teatro, ao refletir a respeito da realidade, esclarece as situações, informa os fatos e, assim, aprimora o ser humano.

5. Ao fim do 3-º parágrafo, o autor conclui seu raciocínio e, em seguida, dirige uma pergunta à interlocutora. Diante do contexto apresentado, é possível concluir se ele pretendia ou não obter uma resposta para essa pergunta? Explique sua resposta.

Não, trata-se de uma pergunta retórica, que o remetente utilizou apenas como mais um recurso argumentativo. Todas as vezes que o emissor lança uma pergunta à interlocutora, de maneira irônica, ele expressa seu espanto diante da postura dela.

6 Ainda no terceiro parágrafo, Paulo Autran apresenta os vocábulos “Teatro”, “Verdade” e “Moral”, grafados em maiúsculo, apesar de serem substantivos comuns.

Considerando o conteúdo da carta de leitor lida e o descontentamento do autor com a crítica da mãe, a que conclusão é possível se chegar sobre a intenção do autor ao escrever essas palavras dessa maneira?

Como há um descontentamento muito grande, por parte do autor, diante do posicionamento da mãe com relação à peça Dr. Knock, trata-se de uma tentativa de destacar o conceito, ou seja, o significado de cada um desses vocábulos. O autor usa um recurso argumentativo de grande efeito, pois essa escolha acaba chamando a atenção do leitor para essas palavras.

7. Releia o 5-º parágrafo e responda: Qual foi o propósito de Paulo Autran ao fazer a adaptação abrasileirada da peça do filósofo francês Jules Romains?

Paulo Autran teve a intenção de refletir nosso subdesenvolvimento em todas as áreas. Além disso, ele pretendia desmascarar ou denunciar o comportamento fascista das pessoas poderosas.

8. No excerto “Usei, comicamente, recursos ditos ‘grosseiros’ para denunciar ideias muito mais perniciosas e maléficas do que a simples ‘grosseria’. Fiz mesmo questão de mostrar toda a ‘grosseria’ que está por trás da ‘fachada’ hipócrita e bem-comportada de todos os doutores Knocks imortais que pregam direta ou indiretamente o fascismo.”, há algumas peculiaridades que revelam muito a respeito da intenção do autor.

Por que as palavras “grosseiro”, “grosserias” e “fachada” estão entre aspas? Explique sua resposta.

As aspas indicam que os vocábulos em destaque estão sendo usados em um sentido diferente do usual. Em razão da carga irônica da carta, trata-se de mais um recurso argumentativo para sustentar o ponto de vista do autor.

9. Quais são, segundo Paulo Autran, as ideias perniciosas e maléficas contidas nes- se contexto?

Segundo o autor, seriam as ideias escondidas por trás da hipocrisia das pessoas que compactuam com o fascismo.

10. No 6º- parágrafo, o remetente faz uma sugestão de como essa mãe deveria criar as filhas. Qual é a proposta de educação para a mãe executar com as filhas?

Ele propõe que a mãe mantenha as filhas longe da realidade da vida, preservando-as na ignorância das misérias humanas.

11 Estupefato com a visão da mãe sobre a educação das filhas, o emissor, nesse mesmo parágrafo, dá-lhe, ironicamente, alguns conselhos a esse respeito. Transcreva o conselho que, em sua opinião, é o mais mordaz, ou seja, o mais irônico, o mais ferrenho. Justifique sua escolha.

Sugestão de resposta: “[...] Quanto aos empregados, é melhor contratar só eunucos mudos (não sei se há muitos disponíveis, mas uma mãe zelosa sempre acaba encontrando algum). Mesmo assim, olho neles!”

12. É válido afirmar que esses “conselhos” constituem argumentos usados para a sustentação da tese do emissor? Por quê?

Sim, pois a ironia contida nesses “conselhos” revela que o autor renega toda forma de ignorância, a falta de informação e o pensamento ignorante e preconceituoso.

13. No último parágrafo, Paulo Autran apresenta a expressão “Tradição de sua Família” e a palavra “Propriedade”, em letra maiúscula e em negrito, fazendo uma alusão à TFP, que era uma associação extremamente reacionária e conservadora, isto é, avessa a mudanças sociais e desinformada a respeito de toda e qualquer produção cultural que não fosse tradicional.

Agora que você tem informações a respeito da organização Tradição, Família e Propriedade (TFP), explique o trocadilho do autor nesse parágrafo.

O autor é irônico ao sugerir os vocábulos Tradição, Família e Propriedade à autora da carta, pois as críticas da senhora muito se assemelham à visão da TFP sobre sociedade: eram conservadoras, desinformadas e sem nenhum requinte cultural.

14. Você concorda com as ideias defendidas por Paulo Autran? Justifique sua resposta com argumentos convincentes.

Resposta pessoal.

15. A carta de leitor é um gênero textual que propicia o diálogo dos leitores de jornais e de revistas com os editores e com outros leitores. Por meio da carta de leitor, é possível cobrar, comentar, discordar, discutir, elogiar, reclamar, solicitar, entre outras possibilidades. Que tal identificar alguns elementos próprios desse gênero na carta lida? Leia as perguntas a seguir e responda ao que se pede.

a) A carta de leitor apresenta uma estrutura semelhante à da carta pessoal. Que elementos próprios da estrutura da carta pessoal você observou na carta de leitor escrita por Paulo Autran? Explique.

Na carta de leitor de Paulo Autran, há um vocativo, expressão de chamamento, assunto, despedida e local.

b) Que elemento novo foi acrescentado à carta de leitor, que não há na carta pessoal? Aponte-o.

Na carta lida, há um título, elemento que não existe na carta pessoal.

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