O conto a seguir foi escrito pela autora brasileira Rachel de Queiroz. Leia-o com atenção e observe como o amor pode surpreender em algumas ocasiões.


Amor de acidentado

Aconteceu ultimamente um caso que tem chamado atenção. Estava um moço noivo, de casamento marcado para daí a poucos dias, quando de repente, ao atravessar aquela avenida de mau agouro a que por isso mesmo teimam em chamar Getúlio Vargas, caiu-lhe em cima um automóvel desabrido, desses que não procuram saber se o cristão à sua frente é noivo ou é nada — querem é passante jeitoso para derrubar, como de fato este o derrubou. O mundo não é assim mesmo, incerto e enganoso? De nada vale um homem alimentar no seu coração qualquer espécie de sonhos preciosos ou de esperanças; nem vale o alto juízo que ele faça de si ou sequer o juízo que dele façam os outros; o destino está aí na sua frente, de boca aberta e dentes afiados, na figura de um automóvel, de um micróbio, de uma onda de mar, e tanto vai para o buraco o sonhador rico de promessas como o pobre desesperado para o qual a morte já chegou tarde.

Felizmente o nosso moço não chegou a ir para o buraco. Andou perto nas primeiras horas, rebentou muito osso e deitou muito sangue — mas foi socorrido a tempo, e parece que com bastante gaze, gesso e paciência acaba ficando tão perfeito ou quase tão perfeito quanto antes do desastre.

E agora chegando à parte que chama atenção e que todo mundo acha bonito: segundo foi dito antes, estava a vítima de casamento justo, juiz apalavra- do, padre tratado. A noiva de vestido feito, os doces no forno e o champanha na geladeira. Em vista disso, achou o noivo que, acidentado ou não acidentado, não seria um simples capricho do chofer que iria inutilizar tantos preparativos.

E pois não desdisse nada, não adiou os convites: apenas transferiu a cerimônia para a enfermaria do hospital, e em torno do seu leito de dores se procedeu ao enlace, completo e sem atraso de um minuto.

Bem fazem os que se admiram e acham bonito, porque nestes tempos cínicos e desesperados um caso assim é um sinal tangível de que o amor ainda existe no mundo na sua forma mais pura; e passados nove séculos sobre os túmulos de Abelardo e Heloísa, ainda os encontramos reencarnados na mesma fortaleza de paixão e na mesma integridade de sentimento.

Porque diante daquele homem incógnito, enfaixado, todo revestido de gesso, a moça não hesitou em encontrar o seu amado, o seu escolhido, o único que lhe serve e lhe apela à alma no meio dos bilhões de seres do planeta. Afinal, com isso se prova que o que ela amava não era o simples corpo que o automóvel massacrou — não eram aquelas pernas agora entaladas, aquelas costelas em colete de gesso, o rosto, os lábios, os olhos que a gaze está encobrindo, e que ela não pode jurar que sairão os mesmos da aventura. De tudo que havia dentro ou fora daquele corpo e desse corpo fazendo parte, é evidente que ela amava especialmente o escondido coração dentro do peito, ou a flama imortal e imponderável que sob o nome de alma costumamos dizer que mora dentro do coração.

Ele, por seu lado, ninguém pode dizer que amasse menos. Porque um indivíduo que sofreu tal subversão corpórea, mesmo que retorne à vida sem aparente alteração no seu aspecto físico, não é possível que ressurja para a vida com as mesmas disposições de espírito que costumava usar antes. O lógico é que o rapaz atrevido que caiu debaixo das quatro rodas assassinas saia do hospital um senhor morigerado, que olha duas vezes para cada esquina antes de a atravessar. E no entanto esse homem novo está pronto a endossar os compromissos do homem antigo, e não hesita e corre para o que deseja, sem faixa ou tala que o prenda — por quê? Só porque ama, porque acima da dor, e do receio físico e da preocupação com o conserto que lhe estão fazendo os doutores no triste corpo, estão as necessidades, as exigências da alma.

Vivemos em terra de muitos acidentes, e pois o problema do amor com acidentado deve estar entre nós constantemente se propondo; por isso damos publicidade ao caso do casamento no hospital e o apresentamos à meditação dos interessados. Todos nós poderemos, mais cedo ou mais tarde, estar na situação do moço ou da moça da história: e se a meditação não nos ajudar a fugir da sanha matadora do automóvel desconhecido, pelo menos nos ensinará a não perder as esperanças, e até — quem sabe — no meio da desilusão e da tristeza, de repente ver brotar um milagre.

QUEIROZ, Rachel de. Amor de acidentado.

Disponível em: <http://contobrasileiro.com.br/amor-de-acidentado-conto-de-rachel-de-queiroz/>. Acesso em: 1º- mar. 2018.

1 O conto lido apresenta um enredo que se organiza em torno de um conflito, que é apresentado já no primeiro parágrafo. Essa “oposição entre forças” marca o início da história lida.

Qual é o fato que marca esse conflito? E por que se instaura, na narrativa, um clima tenso? Justifique sua resposta.

O jovem noivo é atropelado por um carro, que o deixa em uma situação de saúde bem vulnerável. A tensão se instaura, pois o dia do casamento do acidentado, que estava todo machucado e no hospital, estava próximo.

2. Sobre o acidente, o narrador comenta: “[...] caiu-lhe em cima um automóvel desabrido, desses que não procuram saber se o cristão à sua frente é noivo ou é nada – querem é passante jeitoso para derrubar, como de fato este o derrubou”.

Explique, com suas palavras, o que o narrador quis dizer com essa afirmação.

O narrador afirma que o noivo foi acidentado por um veículo em que o motorista não estava nem um pouco preocupado com quem estava passando naquela rua, naquele momento. Trata-se de um condutor irresponsável e nada preocupado com os pedestres.

3. Releia este trecho e, depois, responda ao que se pede.

Felizmente o nosso moço não chegou a ir para o buraco. Andou perto nas primeiras horas, rebentou muito osso e deitou muito sangue — mas foi socorrido a tempo, e parece que com bastante gaze, gesso e paciência acaba ficando tão perfeito ou quase tão perfeito quanto antes do desastre.

a) A primeira expressão destacada sintetiza o que aconteceu após o acidente. O que essa expressão significa, considerando o contexto? Comente.

A expressão destacada significa que o noivo não morreu. Apesar de ter ficado bem machucado, ele sobreviveu. Só teria de ter um pouco de paciência e certo cuidado durante a recuperação.

b) A expressão “ir para o buraco” corresponde a uma figura de linguagem. Classifique-a, apresentando a característica dela.

Trata-se de um eufemismo, figura de sintaxe, pois há a tentativa de suavizar a informação de que o rapaz sofrera um grave acidente e quase tinha morrido, ou seja, “ido para o buraco”, uma expressão popular que, nesse contexto, tem o significado de “morrer”.

c) Explique o segundo trecho em destaque, apontando o que quer dizer essa expressão.

A expressão “rebentou muito osso e deitou muito sangue” simboliza como ficou o noivo, fisicamente, depois do acidente: todo quebrado e sangrando muito, ou seja, muito ferido.

4. Releia este outro excerto: “E agora chegando à parte que chama atenção e que todo mundo acha bonito [...]”. Aqui se instaura o clímax do conto de Rachel de Queiroz, o momento máximo da história narrada.

a) Que acontecimento marca o clímax dessa narrativa? Explique sua resposta.

O clímax dessa narrativa acontece no momento em que o casal decide transferir o enlace para o hospital, pois não haveria nada que os impediria de ficar juntos, e o casamento se realiza mesmo diante das circunstâncias adversas.

b) Os noivos se casam, e o narrador acaba demonstrando que o feito fora algo incomum naquela situação. Comprove essa afirmação, transcrevendo um trecho do texto.

Sugestão de resposta: “Nestes tempos cínicos e desesperados um caso assim é um sinal tangível de que o amor ainda existe no mundo na sua forma mais pura; e passados nove séculos sobre os túmulos de Abelardo e Heloísa, ainda os encontramos reencarnados na mesma fortaleza de paixão e na mesma integridade de sentimento.”

5. Releia este outro trecho.

Porque diante daquele homem incógnito, enfaixado, todo revestido de gesso, a moça não hesitou em encontrar o seu amado, o seu escolhido, o único que lhe serve e lhe apela à alma no meio dos bilhões de seres do planeta.

a) Que sentimento é possível perceber no conto e, de maneira bem intensa, nesse excerto? Explique sua resposta.

Espera-se que os alunos respondam que o conto todo é perpassado pelo sentimento do amor, que tudo pode, tudo faz, tudo aceita. A noiva não se importou com as condições do noivo, apenas resolveu casar. E o noivo também, ou seja, esse amor incondicional ditou o rumo dos protagonistas mesmo diante dos percalços.

b) Qual é a figura de linguagem presente nesse trecho? Identifique-a e classifique-a.

Em “no meio dos bilhões de seres do planeta”, há uma hipérbole, em função do exagero na fala para intensificar a mensagem transmitida.

6. Considerando os personagens, responda: Como o rapaz e a moça reagem diante de tamanha fatalidade? Comprove sua resposta com trechos do texto.

Tanto o rapaz quanto a moça não se deixam abater diante do ocorrido. A moça, quando diante do moribundo, continuou a amá-lo e a pensar no casamento: “Porque diante daquele homem incógnito, enfaixado, todo revestido de gesso, a moça não hesitou em encontrar o seu amado, o seu escolhido [...]”. O rapaz também não se deixa abater e segue firme em seus propósitos: “[...] esse homem novo está pronto a endossar os compromissos do homem antigo, e não hesita e corre para o que deseja [...]”.

7. Releia a conclusão do narrador.

Todos nós poderemos, mais cedo ou mais tarde, estar na situação do moço ou da moça da história: e se a meditação não nos ajudar a fugir da sanha matadora do auto- móvel desconhecido, pelo menos nos ensinará a não perder as esperanças, e até — quem sabe — no meio da desilusão e da tristeza, de repente ver brotar um milagre.

Explique o que o narrador quis afirmar ao proferir essas palavras.

Sugestão de resposta: Segundo o narrador, podemos passar por situações inesperadas, como a apresentada, e essa história pode nos deixar mais alertas, pode renovar nossa esperança em relação à vida e às pessoas, uma vez que toda experiência é válida, desde que nos permitamos ter crescimento pessoal diante dos incidentes.

8. Na história dos jovens noivos, aconteceu algum milagre? Justifique sua resposta.

Sugestão de resposta: Sim, na história dos noivos, conforme o narrador nos apresenta, aconteceu um milagre: o amor venceu todas as circunstâncias, e os percalços, os problemas, não impediram que os enamorados ficassem juntos. Em uma sociedade em que os relacionamentos, geralmente, são tão rasos e passageiros, algo inesperado aconteceu.

O conto é um gênero narrativo ficcional, de curta extensão, se comparado a um romance, por exemplo. Apresenta, geralmente, elementos da narrativa, como personagens, enredo ou ação, tempo, espaço e narrador.

Em relação aos temas abordados no texto, eles não precisam, necessariamente, tratar de fatos do cotidiano, como ocorre na crônica, gênero que será abordado na próxima unidade deste caderno.

9. Após ter lido a definição do gênero conto, responda ao que se pede.

a) Que tipo de narrador há no conto de Rachel de Queiroz? Explique sua resposta.

O conto de Rachel de Queiroz apresenta um narrador onisciente, pois ele conta a história em 3ª pessoa e, às vezes, apresenta pensamentos dos personagens, narrando em 1ª - pessoa. Ele conhece tudo sobre os personagens e sobre o enredo e, muitas vezes, faz suposições sobre o que se passa no íntimo dos personagens, expondo suas emoções e seus pensamentos.

b) Onde se passa a história?

Em uma avenida, cujo nome é Getúlio Vargas, e em um hospital.

c) O tempo narrado na história é cronológico ou psicológico? Por quê?

No conto “Amor de acidentado”, o tempo é cronológico, pois é marcado pela ordem natural dos acontecimentos, ou seja, delimitado pelas horas do relógio, pelos dias, etc.

10 Comentários

  1. 𝐎𝐛𝐫𝐢𝐠𝐚𝐝𝐚 𝐦𝐞𝐮 𝐚𝐣𝐮𝐝𝐨𝐮 𝐦𝐮𝐢𝐭𝐨❤️

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  2. Muito obrigada ajudou muito a minha filha 😊

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  3. Esse site é MARAVILHOSO.

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  4. Obrigada me ajudou muito

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  5. Obrigada me ajudou muito 😊

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  6. Não me ajudar em tudo mas obrigado

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  7. Me ajudou pra caramba kskskksksk , tenho uma atividade pra entregar amanhã e esse site me ajudou a terminar .

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