Auto da Compadecida

 [...]

JOÃO GRILO

Eu não lhe disse que a fraqueza da mulher do patrão era bicho e dinheiro?

CHICÓ

Disse.

JOÃO GRILO

Pois vou vender a ela, para tomar o lugar do cachorro, um gato maravilhoso, que descome dinheiro.

CHICÓ

Descome, João?

JOÃO GRILO

Sim, descome, Chicó. Come, ao contrário.

CHICÓ

Está doido, João! Não existe essa qualidade de gato.

JOÃO GRILO

Muito mais difícil de existir é pirarucu que pesca gente e você mesmo já foi pescado por um.

CHICÓ

É mesmo, João, do jeito que as coisas vão eu não me admiro mais de nada!

JOÃO GRILO

Pra uma pessoa cuja fraqueza é dinheiro e bicho, não vejo nada melhor do que um bicho que descome dinheiro.

CHICÓ

João, não é duvidando não, mas como é que esse gato descome dinheiro?

JOÃO GRILO

É isso que é preciso combinar com você. A mulher vem já pra cá, cumprir o testamento. Eu deixei o gato amarrado ali fora. Você vá lá e enfie essas pratas de dez tostões no desgraçado do gato, entendeu?

CHICÓ

Entendi demais. [Vai sair mas volta.] Ó João!!

JOÃO GRILO

Que é?

CHICÓ

E cabe?

JOÃO GRILO

Sei lá! Se não couber, bote de cinco tostões, entendeu?

CHICÓ

Entendi.

JOÃO GRILO

Quando eu gritar por você, venha, me entregue o gato e deixe o resto por minha conta.

CHICÓ

vai sair mas volta E o que é que eu ganho nisso tudo?

JOÃO GRILO

Uma parte no testamento do cachorro.

CHICÓ

idem

E se o negócio der errado?

JOÃO GRILO

Lá vem você com suas latomias! Quer ou não quer?

Se não quer diga logo, que eu arranjo outro sócio.

CHICÓ

Quero.

[...]

JOÃO GRILO

Homem, vá-se embora, pelo amor de Deus, que a mulher vem por aí! [...]

Chicó faz uma saudação à mulher, que vem entrando, com dois pacotinhos de dinheiro, e sai.

JOÃO GRILO

Como vai a senhora? Já está mais consolada?

MULHER

Consolada? Como, se além de perder meu cachorro, ainda tive de gastar treze contos pra ele se enterrar?

[...]

JOÃO GRILO

Quem não tem cão, caça com gato.

MULHER

Como é?

JOÃO GRILO

Quem não tem cão caça com gato e eu arranjei um gato que é uma beleza pra senhora.

MULHER

Um gato?

JOÃO GRILO

Um gato.

MULHER

E é bonito?

JOÃO GRILO

Uma beleza.

MULHER

Ai, João, traga para eu ver! Chega a me dar uma agonia! Traga, João, já estou gostando do bichinho. Gente, não, é povo que não tolero, mas bicho dá gosto.

JOÃO GRILO

Pois então vou buscá-lo.

MULHER

Espere. Sabe do que mais, João? Não vá buscar o gato que isso só me traz aborrecimento e despesa. Não viu o que aconteceu com o cachorro? Terminei tendo que fazer testamento.

JOÃO GRILO

Ah, mas aquilo é porque foi seu cachorro. Com meu gato é diferente...

MULHER

Diferente por quê?

JOÃO GRILO

Porque, em vez de dar despesa, esse gato dá lucro.

MULHER

Fora cabra, vaca, ovelha e cavalo, bicho que dá lucro não existe.

JOÃO GRILO

Não existe se não... Eu fico meio encabulado de dizer!

MULHER

Que é isso, João, você está em casa! Diga!

JOÃO GRILO

É que o gato que eu lhe trouxe descome dinheiro.

MULHER

Descome dinheiro?

JOÃO GRILO

Descome, sim.

MULHER

Essa eu só acredito vendo!

JOÃO GRILO

Pois vai ver. Chicó!

MULHER

Ah, e é história de Chicó? Logo vi.

JOÃO GRILO

Nada de história de Chicó, mas foi ele quem guardou o bicho. Chicó!

CHICÓ

entrando com o gato

Tome seu gato. Eu não tenho nada com isso.

João dá-lhe uma cotovelada e apresenta o gato à mulher.

JOÃO GRILO

Está aí o gato.

MULHER

E daí?

JOÃO GRILO

É só tirar o dinheiro.

MULHER

Pois tire!

JOÃO GRILO

virando o gato para Chicó, com o rabo levantado

Tire aí, Chicó.

CHICÓ

Eu não, tire você!

JOÃO GRILO

Deixe de luxo, Chicó, em ciência tudo é natural.

CHICÓ

Pois se é natural, tire.

JOÃO GRILO

Então tiro. [Passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostões.] Está aí, cinco tostões que o gato lhe dá de presente.

MULHER

Muito obrigada, mas se você não se zanga eu quero ver de novo.

JOÃO GRILO

De novo?

MULHER

Vi você passar a mão e sair com o dinheiro, mas agora quero ver é o parto.

JOÃO GRILO

O parto?

MULHER

Sim, quero ver o dinheiro sair do gato.

JOÃO GRILO

Pois então veja.

MULHER

depois da nova retirada

Nossa senhora, é mesmo! João, me arranje esse gato pelo amor de Deus!

JOÃO GRILO

Arranjar é fácil, agora, pelo amor de Deus é que não pode ser, porque sai muito barato. Amor de Deus é coisa que eu tenho, dê ou não lhe dê o gato.

MULHER

Quer dizer que não tem jeito de eu arranjar esse gato?

JOÃO GRILO

Tem um jeito, e é até fácil!

MULHER

Pois diga qual é, João.

JOÃO GRILO

Deixe eu entrar no testamento do cachorro.

MULHER

Pois você entra! Por quanto vende o gato?

JOÃO GRILO

Um conto, está bom?

MULHER

Está não, está caro.

JOÃO GRILO

Mas por um gato que descome dinheiro!

MULHER

Já fiz a conta, vou levar dois mil dias só pra tirar o preço.

JOÃO GRILO

Mas ele descome mais de uma vez por dia, a senhora não viu?

MULHER

Mas ele pode morrer! Só dou quinhentos e se você não aceitar será demitido da padaria.

JOÃO GRILO

Está certo, fica pelos quinhentos.

MULHER

Tome lá. Passe o gato, Chicó. Meu Deus, que gatinho lindo! Agora a coisa é outra, tenho um filho novo e vou tirar o prejuízo.

Sai, contentíssima.

[...]

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida.

Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 71-74, 76-81.

1. Após ler o texto, suas hipóteses sobre o motivo de a mulher querer outro animal de estimação, a estratégia utilizada por João Grilo para enganá-la e o sucesso do plano se confirmaram? Comente.

Resposta pessoal.

2. O texto lido apresenta um plano criado por João Grilo para tentar enganar a esposa do padeiro.

a) O que havia acontecido para que a mulher se interessasse pela proposta de João Grilo?

Ela havia perdido seu cachorro, morto recentemente, além disso teve uns gastos com o enterro dele.

b) Que argumentos ele utilizou para convencer a mulher a fazer negócio com ele?

Ele disse ter arrumado um gato diferente, que daria lucro a ela, pois o animal descomia (defecava) dinheiro.

c) O fato de o gato “ter” a habilidade citada por João Grilo despertou na mulher um interesse que revela uma característica humana negativa. Qual é essa característica?

Explique-a.

A característica é a ganância. A mulher somente demonstrou interesse depois que soube que o gato lhe “daria” dinheiro.

d) Em que trecho do texto João Grilo evidencia essa característica da mulher?

No trecho “Pra uma pessoa cuja fraqueza é dinheiro e bicho, não vejo nada melhor do que um bicho que descome dinheiro.”

3. Por meio das falas e das ações das personagens, é possível identificar algumas

de suas características psicológicas. Que características podem ser atribuídas

aos personagens João Grilo e Chicó?

João Grilo é muito esperto e Chicó é mentiroso e medroso.

4. Para colocar seu plano em prática, João Grilo pediu ajuda ao amigo Chicó.

a) Qual foi a reação de Chicó diante do pedido de João?

Ele duvidou de que o plano daria certo e ficou temeroso do que poderia acontecer. Mas, apesar disso, ele aceitou participar do plano.

b) O que João fez para convencer o amigo a participar do seu plano?

Disse que ele ganharia “uma parte no testamento do cachorro”, ou seja, receberia uma parte do dinheiro que ele conseguiria da mulher.

5. O auto é um texto dramático, geralmente curto, originado na Idade Média, de temática religiosa ou cômica. O título do texto lido, Auto da Compadecida, faz referência a uma figura religiosa. A quem você acha que ele se refere?

Sugestão de resposta: Compadecida refere-se à figura da mãe de Jesus, Maria.

Caso os alunos não saibam a resposta, oriente-os a pesquisar mais informações sobre essa história.

6. Em que veículo de comunicação esse texto foi publicado? Onde mais podemos encontrar textos dramáticos?

Em um livro. Também podem ser encontrados em sites e revistas especializadas em teatro.

7. Uma das características de um texto dramático é que, diferentemente de fábulas, contos, crônicas ou romances, ele não apresenta narrador.

a) De que forma os acontecimentos são apresentados ao leitor no texto Auto da Com- padecida?

Por meio das ações e das falas dos personagens.

b) Como é possível identificar a quem se referem as falas?

Por meio da indicação do nome dos personagens ou das suas características, como é o caso da personagem chamada apenas de “mulher”, não sendo citado o nome dela.

Nos textos dramáticos, temos acesso aos acontecimentos da história principalmente pelas falas dos personagens, que podem se expressar em forma de diálogo (conversa entre dois ou mais personagens), monólogo (discurso de um único personagem) e aparte (fala de um personagem apresentando um pensamento ou comentário para si mesmo ou para o público, de modo que tal confissão não seja ouvida pelos demais personagens).

8. No decorrer do texto, são apresentadas indicações cênicas, que não se referem às falas dos personagens.

a) De que maneira essas indicações aparecem destacadas no texto Auto da Compadecida para se diferenciar das falas das personagens?

Elas são escritas em itálico.

b) Essas indicações cênicas são também chamadas de rubricas. Releia algumas rubricas do Auto da Compadecida e escreva com que função elas foram empregadas.

I – Entendi demais. [Vai sair mas volta.] Ó João!!

II – Chicó faz uma saudação à mulher, que vem entrando, com dois pacotinhos de dinheiro, e sai.

III – Sai, contentíssima.

Sugestão de resposta: Para indicar a movimentação dos personagens e o modo como eles agem e se sentem.


9. Leia o trecho a seguir, extraído de outro texto dramático.

Ato Único

Sala com uma porta no fundo, duas à direita e duas à esquerda uma mesa com o que é necessário para escrever-se, cadeiras, etc.

CENA I

Paulina e Fabiana. Paulina junto à porta da esquerda e Fabiana no meio da sala mostram-se enfurecidas.

Paulina, batendo o pé — Hei-de mandar!

Fabiana, no mesmo — Não há-de mandar!

Paulina, no mesmo — Hei-de e hei-de mandar!...

Fabiana — Não há-de e não há-de mandar!...

Paulina — Eu lhe mostrarei. (Sai.)

Fabiana — Ai, que estalo! Isto assim não vai longe... Duas senhoras a mandarem em uma casa... é o inferno! Duas senhoras? A senhora aqui sou eu; esta casa é de meu marido, e ela deve obedecer-me, porque é minha nora. Quer também dar ordens; isso veremos...

Paulina, aparecendo à porta — Hei-de mandar e hei-de mandar, tenho dito! (Sai.)

Fabiana, arrepelando-se de raiva — Hum! Ora, eis aí está para que se casou meu filho, e trouxe a mulher para a minha casa. É isto constantemente. Não sabe o senhor meu filho que quem casa quer casa... Já não posso, não posso, não posso! (Batendo com o pé.) Um dia arrebento, e então veremos! (Tocam dentro rabeca.) Ai, que lá está o outro com a maldita rabeca... E o que se vê: casa-se meu filho e traz a mulher para minha casa... É uma desavergonhada, que se não pode aturar. Casa-se minha filha, e vem seu marido da mesma sorte morar comigo... É um preguiçoso, um indolente, que para nada serve. Depois que ouviu no teatro tocar rabeca, deu-lhe a mania para aí, e leva todo o santo dia — vum, vum, vim, vim! Já tenho a alma esfalfada. (Gritando para a direita:) O homem, não deixarás essa maldita sanfona? Nada! (Chamando:) Olaia! (Gritando:) Olaia!

PENA, Martins. Quem casa, quer casa e outras comédias.

Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 11.

Identifique e copie as rubricas empregadas nesse trecho para:

a) descrever o cenário.

Sala com uma porta no fundo, duas à direita e duas à esquerda, uma mesa com o que é necessário para escrever-se, cadeiras, etc.

b) indicar ações ou movimentações das personagens.

Batendo o pé, sai, aparecendo à porta.

c) indicar como a personagem estava se sentindo

Arrepelando-se de raiva.

d) indicar a maneira de falar da personagem.

Gritando para a direita, chamando, gritando.

e) indicar o que está fazendo um personagem que não está em cena.

Tocam dentro rabeca.

As indicações cênicas, chamadas de rubricas, são citações que têm a função de indicar as movimentações, a maneira de pensar, de falar ou de agir dos personagens, bem como descrever o que eles estão sentindo. Além disso, elas mostram como deve ser a caracterização do ambiente, da iluminação ou do som, entre outros detalhes.

10 Após ler o trecho de Auto da Compadecida e o trecho do texto dramático da página anterior, responda às questões.

a) Esses textos foram escritos apenas para serem lidos? Justifique sua resposta.

Não, esses textos foram escritos para serem encenados. As rubricas, por exemplo, dão instruções aos atores e diretores da peça, informando o que deve ser colocado em prática durante a apresentação.

b) Quem é o interlocutor quando esse texto é dramatizado?

O público que vai assistir à peça teatral.


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